O livro argentino que vai te deixar em ressaca literária por mais de 365 dias

O livro argentino que vai te deixar em ressaca literária por mais de 365 dias

Ninguém avisa que “Os Sete Loucos” não é sobre loucura, pelo menos não da forma que a psiquiatria quer nos convencer. A loucura ali é outra coisa. É sistema nervoso doente. É tecido urbano inflamado. É Argentina das entranhas e dos porões e das confissões sussurradas entre cigarros e urinas e convulsões de ódio e ternura. É como se Roberto Arlt tivesse enfiado os dedos num circuito elétrico e começado a escrever com os espasmos, não com a razão, muito menos com o gosto alheio. Quem procura ordem aqui se afoga. E quem aceita o desvio encontra um espelho estilhaçado, cada fragmento refletindo uma parte do que ainda não foi possível nomear.

A história, se é que há uma, gira ao redor de Erdosain, e mesmo isso parece uma armadilha. Um homem tão comum que chega a ser irreal. Um funcionário de segunda, um delinquente de ocasião, alguém que rouba da própria firma como quem precisa lembrar que ainda é capaz de decidir alguma coisa. Erdosain vive em estado febril, não só pela culpa, mas por uma espécie de ardência metafísica. Ele quer algo. Algo grande, mas informe. Ele quer talvez redenção, talvez terror. E no meio do caminho, surgem os outros, os sete, figuras que mais parecem espectros de uma febre coletiva, cada um carregando um fragmento de apocalipse pessoal.

Os Sete Loucos, de Roberto Arlt (Iluminuras, 248 páginas, tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro)

Não há aqui personagens “redondos” ou “bem construídos”, como os manuais gostam de ensinar. O que há é delírio estruturado como tese anarquista. Uma conspiração nascida no estômago. Um plano revolucionário liderado por um Astrólogo, figura que poderia ter saído de um sonho de Dostoievski, mas com o cheiro de suor mal lavado que só Arlt parece conseguir captar. O Astrólogo quer destruir tudo, o sistema, as igrejas, os escritórios, os cafés burgueses. Mas não para construir nada no lugar. Ou talvez sim, mas algo que só ele entende e que muda a cada frase. Ele quer construir uma sociedade secreta com prostitutas, assassinos e poetas falidos, e ninguém tem certeza se ele está fingindo ou se, no fundo, é o único que sabe exatamente o que está fazendo.

A Argentina de Arlt é o contrário da Buenos Aires de Borges. Nada de esquinas iluminadas por faróis de névoa, nada de bibliotecas em espiral. Aqui os livros estão mofados, as ideias sujas, as palavras cortam. É uma escrita que mastiga vidro, que fede a pólvora e graxa, que sabe que a miséria não é poética. “Os Sete Loucos” é, de certo modo, um livro sobre o fracasso como condição nacional. Mas não um fracasso nobre, um fracasso pegajoso, com caspa e unhas roídas, com risos frouxos em botequins onde o tempo para e ninguém mais sabe como foi parar ali.

A linguagem não ajuda. Ou melhor, não quer ajudar. Arlt escreve como quem está caindo de um terceiro andar e ainda tenta terminar a frase antes do impacto. Tem passagens que soam como telegramas bêbados. Outras lembram relatórios policiais escritos à mão por alguém com tremores. Mas o efeito, ainda que desconcertante, não é gratuito. A forma segue a agonia. A frase longa, meio torta, meio gritante, meio súplica, é a moldura perfeita para um mundo que não cabe em frases bem-comportadas.

E não há catarse. Ou melhor, há, mas toda errada. Quando o leitor espera redenção, recebe pus. Quando espera revolução, recebe ruínas. Quando espera loucura, encontra lucidez demais, e vice-versa. É como se Arlt soubesse que o verdadeiro desespero não grita, sussurra. Que a verdadeira loucura não está em rasgar as roupas, mas em seguir batendo o ponto, dia após dia, com um buraco no peito onde antes havia algo como fé.

Há momentos em que Erdosain fala de Deus, mas é um deus vagabundo, um deus-fantoche, um deus cansado que talvez more numa oficina de periferia e que deixou o universo rodando no automático porque perdeu o interesse. Um deus que sangra, que coça os testículos, que esquece nomes. Um deus que é mais uma desculpa do que uma presença. E mesmo assim, Erdosain insiste. Como quem sabe que não há nada ali, mas mesmo assim reza. Porque é isso ou o vazio total. E talvez o vazio total não seja uma opção. Ou seja, e ele só não quer admitir.

Mas o que é mais devastador em “Os Sete Loucos” não é a violência, nem a conspiração, nem a decadência das ideias. É o modo como Arlt capta a sensação de estar perdido dentro do próprio corpo. De querer fazer parte de algo, de qualquer coisa, e não conseguir. De sentir que tudo, absolutamente tudo, está errado, mas continuar andando, porque parar também não resolve. É um livro sobre a espera. Não pela salvação, mas por um sinal de que o desespero pelo menos tem forma. E mesmo isso talvez seja pedir demais.

Ninguém termina esse livro melhor do que começou. E não é por causa da “dureza temática” ou da “complexidade psicológica dos personagens”, essas frases vazias que a crítica adora repetir. É porque Arlt, de algum modo, infecta. O livro contamina. Ele entra por debaixo da pele e se aloja em lugares que nem Freud deu nome. E fica ali. Por dias, semanas. Um incômodo sem diagnóstico. Uma tosse seca que não passa. Uma saudade de algo que não se viveu.

Ler “Os Sete Loucos” é como lembrar de um sonho ruim que volta meses depois, num cheiro, numa notícia, num olhar vago de alguém no metrô. É a sensação de que algo aconteceu, algo muito errado, mas ninguém mais lembra. Só você. E mesmo você já não sabe ao certo o que era. Só sente.

Então você fecha o livro. Guarda na estante. Promete que vai reler um dia. Talvez no verão. Talvez quando a vida acalmar. Mas o livro continua ali. Te olhando. Rindo baixo. Esperando o próximo buraco no peito por onde escorrer.