Chovia fino naquela noite ou talvez fosse apenas o vento empurrando a água do telhado contra a janela — mas a janela estava fechada, lembrava-se disso com alguma segurança, embora o som, o som era exatamente aquele que fazia quando um gato invisível arranhava a alma da casa. E ele, ele andava pela sala com os pés nus, com um vinil de Miles Davis tocando num volume baixo demais para quem queria se distrair, mas alto demais para quem queria pensar. Era esse o limiar exato onde ele morava: entre a distração e o pensamento, entre um mundo enterrado e outro inacabado, onde todas as vozes falavam baixo e os sonhos eram silenciosamente absurdos.
Ninguém sabe ao certo quem é o homem nos livros de Murakami. Não se trata de segredo — segredos supõem uma vontade de esconder. É mais como aquele número que se repete nos sonhos, mas desaparece quando tentamos acordar com ele na ponta da língua. Ele tem 30 e poucos anos, ou 40 e poucos anos, ou talvez já seja velho e não saiba. Ele é tradutor, ou talvez trabalhe com jazz, ou talvez conserte poços em casas abandonadas. Ele gosta de nadar. Gosta de silêncio. Não se importa muito com o que está acontecendo no mundo, mas sempre há um mundo prestes a colidir com o dele. Tem um gato, perde o gato, encontra outro gato que não é o mesmo. Ama uma mulher, perde a mulher, ama outra que tem o mesmo vazio no olhar. Ele está sempre sozinho — mas não parece infeliz com isso. Há algo ali, na solidão dele, que parece ter sido cuidadosamente cultivado. Como se ele precisasse daquela ausência para funcionar.
Às vezes ele tem um nome. Watanabe. Okada. Tsukuru. Mas eles soam sempre como nomes falsos, nomes emprestados para alguém que nunca foi bom em ser ele mesmo. Um homem que existe como uma hipótese. E talvez seja mesmo só isso — uma hipótese que Murakami ensaia há mais de quatro décadas, como quem volta para a mesma casa todas as noites sabendo que ninguém mais mora lá, mesmo assim acende as luzes, faz café, ouve discos antigos, escreve cartas que não envia.
Não se trata de repetição. Não do tipo banal. É mais como um loop com pequenas falhas, uma agulha que desliza no sulco de um vinil gasto e repete o trecho de um jazz estranho com ligeiras diferenças: o mesmo acorde, mas mais cansado; a mesma frase, só que dita por outra boca, em outra estação. Murakami escreve como quem desconfia do tempo — como se o tempo fosse apenas uma invenção grosseira para medir coisas que não cabem em relógios.
E aí ele tenta medir outra coisa. O intervalo entre um sumiço e outro. O som que uma memória faz quando afunda. A distância entre o corpo de uma mulher e o que ficou dele depois. A espera por algo que não tem nome — mas que, de algum modo, justifica levantar da cama todas as manhãs.
Esse homem de seus livros, seja qual for o nome, nunca discute o mundo lá fora. Não comenta eleições, não parece saber de pandemias, não menciona preços de comida ou inflação. Ele vive em um Japão que não é o Japão. Um país feito de corredores vazios, poços no quintal, apartamentos pequenos e livros não lidos. Às vezes há uma guerra no fundo da narrativa. Uma guerra antiga. Algum sargento perdido na memória de outro personagem. Mas nunca é uma guerra real, nunca é uma denúncia. É um eco. E esse eco parece ter moldado tudo. Como se todos os homens de Murakami tivessem sido crianças durante uma explosão que ninguém explicou direito.
Haruki Murakami — e isso é uma teoria, não uma afirmação — escreve porque algo ficou preso. Alguma coisa entalada entre a garganta e a espinha, como uma nota musical que ele ouviu uma vez e passou o resto da vida tentando reconstituir. Talvez tenha a ver com um livro que não terminou. Um amor de adolescência. Um barulho que ninguém mais ouviu. Um cheiro de trem. Ele próprio parece uma figura que poderia ter saído de seus romances: corre todo dia, ouve música enquanto escreve, gosta de whisky e silêncio e raramente aparece em público. Quando aparece, tem sempre o mesmo olhar de quem está pensando em outra coisa. Ele escreve como quem prefere não dizer.
E nesse não dizer está o que importa. O homem dos seus livros está sempre prestes a descobrir algo, mas nunca descobre. Abre portas. Mergulha em poços. Escuta ruídos do outro lado da parede. Mas a revelação nunca vem. E isso, ao contrário do que parece, não é uma falha. É o ponto.
Talvez ele só esteja tentando entender o que significa estar ali. O que significa estar vivo num corpo que envelhece, que sente saudade de coisas que não aconteceram, que ama pessoas que já foram embora antes de existir. O que significa seguir em frente quando não há direção. Murakami não escreve sobre heróis. Escreve sobre gente que acorda sem saber se dormiu. Gente que come macarrão instantâneo às duas da manhã. Que ouve um disco inteiro sem perceber. Que sente saudade de uma mulher que não se lembra bem do rosto. E, acima de tudo, gente que nunca entendeu se estava vivendo de verdade ou apenas assistindo a si mesma de fora.
Há críticos que o acusam de ser sempre igual. De repetir fórmulas. De escrever o mesmo livro com outras roupas. Eles não estão errados. Só estão lendo do jeito errado. Murakami não está interessado em novidades. Ele quer precisão emocional. O mesmo solo. A mesma alma. A mesma melancolia azulada. Só que sob outras luzes.
Ler seus livros em sequência é como ouvir alguém que conta, pela quinquagésima vez, a história da mulher que desapareceu sem explicação. E cada vez que conta, ele muda um detalhe. Não para enganar, mas porque está tentando se aproximar do que doeu. Do que escapou. Há uma obsessão ali — mas não uma obsessão banal. É como quem olha mil vezes para a mesma fotografia esperando que, uma hora, a pessoa na imagem se mova.
Talvez ele tenha mesmo escrito cinquenta livros sobre a mesma pessoa. Ou talvez tenha escrito um só livro, imenso, quebrado em capítulos que se espalharam no tempo, esperando que alguém um dia cole tudo de volta e diga: ah, era isso.
Mas ninguém vai dizer. Porque não é para entender. É para sentir o desconcerto. Para perceber a solidão daquele homem que acorda sem sonhos e passa o dia esperando por algo que não sabe o nome. Para ouvir, no silêncio entre as páginas, o som de um telefone que não toca. Para lembrar que todos temos alguém que desapareceu sem explicação. E que talvez sejamos todos a mesma pessoa, narrada em oitavas diferentes, tentando voltar ao começo por um caminho que já não existe. Ou talvez não. Talvez ele só quisesse escrever um livro sobre um cara que gosta de gatos. E não parou mais.