Não é sobre talento. Ou talvez seja — mas só até certo ponto, aquele ponto tênue onde o talento das mulheres começa a parecer “surpreendente”, “sensível”, “relevante”. A crítica ainda tem dificuldade de chamar uma mulher de gênio sem soar paternalista. Parece que a genialidade feminina precisa vir com um aviso de exceção: não é regra, é milagre. E milagres não se repetem, não se ensinam, não fundam escolas.
Simone de Beauvoir, lá atrás, já dizia: ninguém nasce mulher, torna-se. Mas e quanto ao homem-escritor? Torna-se também, claro — mas em outro tempo, outra moldura. Um escritor homem não precisa justificar sua voz. Ninguém pergunta se ele está “falando de si” ou se escreveu “com base em experiências pessoais”. Ninguém quer saber se ele é pai, se cuida da casa, se divide o tempo entre os filhos e os prêmios.
No Brasil, a paisagem é conhecida. De cada dez vencedores do Prêmio Jabuti nas categorias de ficção entre 1959 e 2010, ao menos oito eram homens. Em boa parte das décadas, dez de dez. Não é que não houvesse mulheres escrevendo — é que não se olhava para elas. A literatura feminina era um subterrâneo iluminado por lâmpadas caseiras. Até hoje, escritoras precisam vencer a categoria “literatura de mulher” para depois, quem sabe, disputar a “literatura”. Como se o que escrevem estivesse sempre de salto alto, pouco universal, pouco abstrato, pouco viril.
E não que o mercado editorial esteja às escuras. Hoje, há editoras lideradas por mulheres, curadoras literárias, feiras mais inclusivas. Mas basta olhar os rankings dos mais vendidos ou os painéis das grandes premiações: os sobrenomes que ressoam ainda carregam barba. Autores que escrevem sobre família são lidos como analistas profundos da condição humana. Autoras que escrevem sobre família são vistas como dondocas burguesas privilegiadas — com tempo livre pra escrever.
Claro que há exceções. Sempre houve. Mas a exceção virou argumento para negar a regra. Veja a fulana! E a cicrana? E Clarice, poxa. Mas é um truque antigo: citar uma minoria para disfarçar a exclusão sistemática. Como se uma ou outra voz servisse de biombo para um sistema que, no fundo, prefere a gravidade vocal masculina.
Isso aparece até na linguagem. Homens escrevem “livros”. Mulheres, “romances”. Homens são “densos”. Mulheres, “intensas”. Homens têm estilo. Mulheres, sensibilidade. Ele tem voz própria. Ela tem algo a dizer. Palavras que vestem como casacos velhos: a crítica veste os homens com seriedade e as mulheres com emoção brilhosa — e depois pergunta por que eles são mais lidos.
No campo acadêmico, o enredo é parecido. As grades curriculares dos cursos de Letras seguem ensinando os mesmos nomes: Drummond, Machado, Rosa, Borges, Kafka, Saramago. Quando aparecem autoras, é em disciplinas optativas ou nos finais de semestre, como se fossem brisa depois do peso. A tradição ainda pesa. E o cânone não é neutro: é uma construção histórica que foi erguida a partir de critérios que valorizavam o que os homens escreviam sobre si mesmos — e que chamavam isso de “experiência universal”.
O mais curioso é que, fora da bolha acadêmica (e talvez também dentro dela), são justamente as mulheres que mais leem. Pesquisa após pesquisa, elas aparecem como as maiores leitoras no Brasil. Mulheres sustentam o mercado e, mesmo assim, raramente o protagonizam. É um paradoxo: o público é feminino, mas o prestígio é masculino.
E aí vem a pergunta que ninguém gosta de fazer em voz alta: será que autores homens ainda são mais valorizados apenas por serem homens?
Não apenas. Mas também. A resposta incomoda porque é estrutural. Não se trata de apontar culpados com nome e CPF, mas de perceber as engrenagens que giram mesmo sem estarmos olhando. Um autor homem escreve e é, desde o início, levado a sério. Não há o mesmo ceticismo, a mesma espera por confirmação, a mesma cobrança de universalidade e, ao mesmo tempo, de delicadeza. A ele basta escrever bem. À autora, é exigido mais: que seja irrepreensível, inovadora — mas não demais —, íntima — mas não piegas —, politizada — mas não panfletária.
Se fosse só no passado, seria fácil. Mas o passado ainda respira dentro das prateleiras. Um editor ou crítica pode jurar que é imparcial, que só importa a qualidade do texto — mas essa qualidade já vem moldada por séculos de expectativa. O que é “literário”? O que é “bem escrito”? Quem ensinou isso? Quem decidiu? A estética é também política, mesmo quando finge não ser.
E, enquanto isso, escritoras seguem empurradas para nichos. Literatura LGBTQIA+, literatura negra, literatura feminina. Gêneros que são tratados como guetos. Já o homem branco hétero que escreve sobre si é apenas escritor. A norma não se vê como norma. É o que acontece com o centro: ele não precisa se localizar.

Sim, há uma explosão de novas vozes. Autoras como Marcela Dantés, Andrea del Fuego, Tatiana Salem Levy, Natalia Timerman, Eliana Alves Cruz, Socorro Acioli, Giovana Madalosso, Cíntia Moscovich, Natalia Zuccala, Vanessa Barbara, Cida Pedrosa, Veronica Stigger, Carola Saavedra e tantas outras estão escrevendo livros com potência e estilo, vendendo, ganhando leitores e — às vezes — prêmios. Mas essa maré ainda enfrenta o quebra-mar invisível da crítica, da curadoria, do hábito. Porque, em silêncio, ainda se espera que a “grande literatura” venha de um certo tipo de homem, com certo tipo de discurso. E, se vier de outro lugar, será classificada como “importante”, “necessária”, “urgente” — mas não como “grande”.
O machismo estrutural não se resume ao que se diz; ele mora no que não se lê. Na ausência que se repete sem ser notada. No impulso de confiar antes mesmo da leitura. No espanto diante da competência. No uso das palavras certas para uns e do diminutivo para outras.
Ninguém diz isso em voz alta, claro. Porque é feio, porque ninguém quer parecer misógino em 2025. Mas, se o nome na lombada faz diferença antes da primeira página, então a pergunta continua em aberto. E a resposta, infelizmente, ainda é: sim. Ainda são mais valorizados. E não apenas por serem homens. Mas, em boa parte, por exatamente isso.