Uma revolução lenta, mas estrepitosa, tem provocado fervorosos debates no Brasil e em outros países de língua latina: o vocabulário neutro. Palavras como “amigue”, “menine” e o uso de “@” ou “x” para substituir as desinências de gênero vêm ganhando visibilidade nos espaços mais à esquerda, em especial entre militantes, artistas, instituições acadêmicas e perfis influentes nas redes sociais. Para alguns, trata-se de uma medida necessária para a inclusão e o reconhecimento da diversidade. Para outros, é apenas mais um capítulo da lacração, termo usado para criticar posturas de demasiado engajamento, autorreferentes ou mesmo performáticas. O todes, afinal, veio para ficar? A resposta curta é não. Entretanto, para que se chegue a uma constatação definitiva, há que se ter em análise as nuanças culturais, políticas, idiomáticas e até filosóficas que têm forjado a tal metamorfose, sintoma de um mundo que parece disposto a rejeitar tudo quanto cantava a velha musa — sem, contudo, saber precisar o valor do que deseja eleger como o novo parâmetro.
Mais do que uma ferramenta de comunicação, a língua serve também para que seres humanos identifiquem-se entre si. Os códigos linguísticos jamais pararam de evoluir, incorporando novos termos, abolindo outros, tudo para obedecer ao pêndulo da história. O que a linguagem neutra traz de diferente é o sensível recorte de gênero. A gramática normativa da língua portuguesa é binária, com masculino e feminino, sendo que aquele tradicionalmente assume o papel universal ou “neutro”. Um grupo com noventa mulheres e um homem será tratado como “eles”. A linguagem neutra pretende romper com essa lógica, igualmente permitindo que pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros possam ser incluídas. A demanda é legítima — e o incômodo, também. O grande busílis é o modo como esse pleito tem sido apresentado por certos grupos: de maneira impositiva, moralizante e quase sempre avessa ao diálogo. Por tudo isso, a linguagem neutra acaba não incluindo minorias, mas afastando quem vê entraves para sua adoção. Esses são os “intolerantes”, os “rudes”, os “conservadores”, os “reacionários”. Como toda mudança vertical, de cima para baixo, o todes degringolou em mecanismo de coerção. Professores são obrigados por alunos (!) a usar pronomes, adjetivos e substantivos neutros (!!), o que resulta num eterno conflito geracional, ilustrado por aberrações a exemplo de “elu”, “bonite” e “adulte”; empresas estão cada vez mais receosas do famigerado cancelamento caso não se rendam aos desmandos da nova tendência; artistas, claro, são os primeiros a acusar o golpe e, mais realistas que o rei, patrocinam debates em que nem mesmo eles acreditam.
A grande encrenca da linguagem neutra não é exatamente sua proposta essencial, mas o contexto em que se insere. Em tempos de polarização feroz, em que qualquer divergência é tratada como crime de pensamento, ideias que deveriam ser expostas com serenidade viram armas para vencer debates morais nas redes — com os linchamentos de reputações que advêm daí. A linguagem neutra talvez nunca seja capaz de transcender o discurso e ganhar o cotidiano, afinal, o todes pode até soar convincente num postagem no Instagram, mas é inadmissível numa comunicação com um interlocutor desconhecido, por fugir à norma culta. Outro ponto, central, que costuma ser ignorado é que a língua não muda porque um determinado grupo quer ou exige. A Academia Brasileira de Letras até pode aprovar ou coibir modelos, mas não tem o poder de impedir as variações diastráticas do idioma. Destarte, nenhuma militância, por maior que seja seu prestígio, institui uma nova norma sem que ela encontre eco no uso cotidiano. Palavras e formas gramaticais só se consolidam quando passam a ser usadas de forma espontânea, compreendida e repetida por uma parcela significativa da população. E isso leva tempo. Muito tempo.
Seremos obrigados a falar todes algum dia? Não, ao menos enquanto a sociedade como um todo não estiver disposta a incorporar essa mudança de forma natural — e talvez nunca esteja. Mais importante do que falar todes é saber ouvir todos, principalmente os que ainda nem dominam os tantos mistérios da inculta e bela como se faz conhecer agora.