Há algo subversivo no riso que escapa sem pedir licença. Ele interrompe a ordem, quebra o verniz da compostura, desarma. E quando nasce da leitura, esse riso carrega uma estranha pureza: é íntimo, mas explode para fora; é silenciosamente partilhado com um outro — o autor —, que já não está ali. Rir com um livro é como rir com um fantasma que, de algum modo, sabe exatamente onde cutucar. Há um pacto secreto entre leitor e narrativa que se revela nas horas mais inadequadas: na fila do banco, no vagão abafado do metrô, no consultório onde todos esperam, estoicamente, o chamado do nome completo. A gargalhada, nesses momentos, não é só escândalo: é resistência. É ternura em forma de escárnio.
É que o humor literário, quando funciona, não é apenas engraçado — é preciso, ferino, às vezes até melancólico. Não ri do mundo, ri com ele, e por isso acerta mais fundo. Um livro verdadeiramente engraçado sabe dançar no fio entre o absurdo e o real. Ele não distrai: revela. Como quem aponta o dedo para o rei nu e ainda lhe oferece um espelho com moldura dourada.
Há histórias que se fazem de bobas só para morder com mais força. Personagens ridículos que, no fundo, são retratos nossos — distorcidos, ampliados, adoravelmente insuportáveis. E há frases que nos atingem como tapas de luva: sutilmente cruéis, de tão verdadeiras.
Mas rir sozinho também cansa. O riso precisa de cúmplices. E, por isso, há um prazer especial em indicar esses livros — não como quem recomenda, mas como quem arma uma pegadinha: “Leia isso. Mas não diga que não avisei”. É quase uma travessura. Um convite ao escândalo discreto.
Porque rir continua sendo, talvez, o mais humano dos desatinos. E, num mundo cada vez mais solene — ou fingidamente sereno —, ser pego no ato de gargalhar por causa de um parágrafo bem escrito é uma forma honesta de perder o controle. Um luxo raro, uma queda necessária. E que delícia é cair assim.

Um inseto acorda no corpo de um ser humano e descobre que, além de ter deixado de ser barata, tornou-se primeiro-ministro. Esse é o ponto de partida da farsa política concebida por Ian McEwan como resposta satírica a um tempo de extremos e absurdos institucionais. A narração em primeira pessoa combina lucidez pragmática com estranheza zoológica, criando um efeito cômico deliberado: a criatura, outrora rastejante, analisa com precisão cruel os bastidores da política contemporânea. O tom é cínico, irônico, e se recusa a suavizar a grotesca transformação ideológica que denuncia. A trama não é um espelho invertido da realidade: é um reflexo fiel, apenas ligeiramente deformado, do que já parece, por si, um delírio coletivo. A escrita é enxuta, afiada e eficiente, servindo à crítica mordaz que atravessa cada linha. O protagonista, embora inverossímil, encarna com clareza monstruosa o poder desumanizado, calcado em slogans, manipulação e culto ao embate. A sátira, ainda que embalada em fantasia, não perde contato com a lógica dos fatos: ao contrário, ela a ilumina, revelando o grotesco com crueza. O absurdo, aqui, não distrai — denuncia. McEwan usa o riso não para confortar, mas para alarmar, revelando o quanto de barbárie cabe na normalidade. É um livro curto, preciso e impiedoso, que desafia com elegância a complacência da leitura cega.

Teo, um idoso de 78 anos, vive num asilo decrépito e convive com a sombra de sua própria história — ou melhor, com as versões que ele insiste em inventar. A narrativa se apresenta como o diário cínico de um homem que já não se importa em parecer simpático ou coerente. Seu passado, repleto de ambiguidades, se mistura ao presente sem nostalgia, mas com uma ironia mordaz que subverte qualquer ideal de velhice digna. Teo escreve, sabota, esconde, confessa, reconstrói e, acima de tudo, provoca. O humor é seco, inteligente, muitas vezes desconcertante, conduzindo o leitor a uma intimidade forçada com a decadência física e moral do protagonista. A voz narrativa desafia o tempo inteiro a ideia de verdade, num jogo de desmentidos que beira o absurdo. É nesse movimento entre farsa e lucidez que o livro se ergue como um retrato literário da inutilidade — social, familiar, sexual — que o envelhecimento pode carregar, sem jamais cair no sentimentalismo. A estrutura narrativa é fluida, quase oral, feita de observações cortantes e diálogos que funcionam como embates retóricos. Villalobos constrói, assim, uma tragicomédia contemporânea, onde a compaixão só surge depois do riso desconfortável. Em Teo, encontramos uma figura ao mesmo tempo repelente e magnética, que transforma o asilo em palco de resistência narrativa.

Dois romances reunidos que compartilham a mesma disposição provocadora diante da vida urbana, da boemia e do desajuste social. As narrativas desdobram-se a partir de protagonistas anônimos, homens em estado de deriva, cujas trajetórias se sustentam na recusa às convenções e na entrega a uma existência pautada por impulsos, humor corrosivo e devaneios sensuais. O tom é ora debochado, ora lírico, mas sempre marcado por uma oralidade veloz que cola o leitor à fala solta das ruas. A escrita fragmentada não camufla sua intenção: retratar o esfarelamento do sujeito diante da precariedade afetiva e material, sempre com ironia afiada. As cidades atravessadas por esses personagens não são propriamente cenários, mas extensões simbióticas de sua pulsão errante, traduzindo o excesso, o tédio e a marginalidade que os cercam. A linguagem é arma e vício, compondo quadros em que a vulgaridade se transforma em estilo. Em vez de trama fechada, o que se encontra é o fluxo: o deslocamento constante, a recusa da moral, a tentativa falha de viver sem roteiro. Nesse duplo literário, Moraes constrói uma poética da indigência contemporânea, feita de humor amargo, prazer, ressaca e fuga — uma escrita viva, suada e sem freios, que se arrisca na vertigem do improviso e que, mesmo nos seus momentos mais escatológicos, jamais perde o rigor de sua construção narrativa.

Um jovem judeu nova-iorquino, dilacerado entre culpa religiosa e desejo sexual, despeja numa sessão psicanalítica um turbilhão de confissões íntimas que transitam entre o patético e o obsceno. A voz é histriônica, inconformada, verbalmente exaustiva — uma espécie de catarse que não pede desculpas. A estrutura do romance se dá como fluxo contínuo de pensamento, entrecortado por memórias da infância, fantasias libidinosas e uma relação obsessiva com a figura materna. O protagonista não quer cura: quer falar, transgredir, expor a hipocrisia do mundo à sua volta enquanto se mantém preso aos próprios limites. O humor nasce justamente dessa tensão: é desbocado, provocador, mas carregado de angústia legítima. Roth usa a sexualidade como lente para examinar identidade, moralidade e herança cultural, e o faz com um domínio da linguagem que alterna brutalidade e lirismo com igual eficácia. O tom é nervoso, irônico e profundamente humano. Nenhuma tentativa de redenção é oferecida — apenas o retrato cru de uma psique em ebulição. O monólogo, embora centrado em obsessões individuais, escancara um desconforto geracional e cultural mais amplo, transformando a sessão de análise numa arena teatral de autoflagelação e comédia. Em meio ao escândalo e ao excesso, o que se impõe é uma voz singular, que desafia os limites do humor e da confissão literária.