Ler um grande livro é um privilégio. Ler um livro ruim, porém inesquecível, é um trauma de elite. E sim — há livros que ultrapassam a barreira do aceitável e adentram um território misterioso, onde o constrangimento se mistura ao fascínio. Você continua virando as páginas não porque está preso à trama, mas porque quer ver até onde o autor vai. E ele vai. Vai longe. Vai fundo. E, às vezes, leva você junto — amarrado, confuso e murmurando baixinho: “isso não pode estar acontecendo”.
Alguns desses livros são escritos por gente brilhante. Outros, por gente bem intencionada. Uns poucos, por ex-presidentes. Há neles a tentativa sincera de dizer algo — e é justamente aí que mora o perigo. Porque quando a intenção é maior que o talento, o resultado costuma ser… memorável. E não da maneira que o autor esperava.
O curioso é que essas leituras deixam marcas. Não pela beleza — que, convenhamos, passa longe — mas pela coragem. Há um tipo de audácia em escrever frases como se o mundo fosse acabar no parágrafo seguinte. Um tipo de heroísmo em insistir numa metáfora esticada até o limite do bom senso. E um certo tipo de genialidade involuntária em acreditar que a literatura pode, de fato, salvar o leitor — mesmo que ele não tenha pedido ajuda.
Claro, há momentos em que você quer jogar o livro pela janela. Ou usá-lo como apoio para a mesa bamba. Mas então surge uma imagem, uma frase, um desvio de lógica tão absurdo que você ri. E segue. Porque, no fundo, todo leitor tem um pouco de masoquista. E todo livro ruim — mas honestamente ruim — carrega o dom secreto de nos lembrar por que os bons são tão raros. E tão preciosos.
No final, você não recomenda a leitura. Mas também não esquece. E isso — de certo modo — já é uma vitória literária.

Entre a sabedoria da vó, a bravura do sertão e a lágrima fácil de domingo à noite, desfila a poesia de Bráulio Bessa: doce, rimada, generosa e absolutamente determinada a emocionar. Verso após verso, o autor compõe seu universo com palavras simples, efeitos garantidos e metáforas caseiras. Tudo vem temperado com saudade, fé e orgulho regional, como um prato feito no alpendre — servido com afeto e moral da história. Não há aqui complexidade formal nem tensão estética: o objetivo é consolar. E consolar com gosto. A poesia segue o compasso da fala declamada, feita para plateias que já sabem quando aplaudir. Há conselhos disfarçados de trovas, homenagens a gente sofrida e verdades do tipo “ninguém é forte o tempo todo” escritas com a solenidade de quem quer ser tatuagem. O tom é de resistência emocional — mas sempre acessível, como se a vida fosse uma travessia difícil, porém narrável em estrofes de oito sílabas. O autor acredita, e esse é talvez seu maior mérito: a crença inabalável de que a palavra pode curar. Ainda que, às vezes, a dose seja tão doce que a alma da gente quase desenvolve cárie. No fim, a rapadura resiste. E quem não quiser se render à emoção, que ao menos respeite o açúcar que ela exige.

Num lugar onde as janelas mal se abrem e os diálogos parecem ensaios de silêncio, Brasília aparece como cenário — ou suspeito — de uma série de pequenas tragédias desidratadas. Um menino encara o luto como quem observa a chuva cair sem pressa, casais se debatem em espirais emocionais sem entusiasmo, e vizinhos compartilham o mesmo quarteirão sem jamais compartilhar uma frase inteira. A narrativa se recusa a oferecer consolo ou redenção; pelo contrário, constrói um mosaico de pessoas que não sabem mais o que esperam — e talvez nunca tenham sabido. Fragmentado e frio como o piso de uma repartição às sete da manhã, o texto desliza por existências breves e encardidas, aquelas que a literatura normalmente varreria para fora da página. A linguagem é afiada, seca, quase cruel — e, por isso mesmo, estranhamente precisa. Não há heroísmo, apenas o esforço rotineiro de continuar andando. A cidade não acolhe, apenas observa de longe, como uma divindade modernista e entediada. Ao final, resta a impressão de que a única emoção genuína disponível é a exaustão. E ainda assim, algo pulsa ali — talvez um desejo tímido de ser visto, nem que seja pela fresta da cortina. Ou nem isso.

Pedro Cassavas e Tomás Anselmo acordam em algum lugar do Rio de Janeiro com um plano nobre: viver um dia inteiro como se fossem Marcello Mastroianni — ou ao menos, como se a vida fosse um filme europeu dos anos 60. Entre cafés que esfriam antes de serem bebidos, conversas que nunca chegam a lugar algum e bares onde ninguém parece estar sóbrio, os dois protagonistas encenam uma coreografia de afetos mal ensaiados. O tempo todo, o mundo parece prestes a desabar, mas a tragédia é sempre interrompida por uma piscadela irônica. Tudo se passa em 24 horas, mas cada gesto carrega o tédio de uma década. A narrativa é fluida, cheia de referências culturais, frases bem calculadas e crises existenciais embriagadas — uma espécie de romance de formação que se esqueceu da parte da formação. Há um charme ali, sim, mas é um charme cansado, como o de quem se olha no espelho mais por vaidade do que por autoconhecimento. O Rio não é cenário, é sintoma: bonito, decadente, teatral. O texto se apoia em artifícios sofisticados para descrever vazios muito antigos — o medo de sentir demais, de não sentir nada, de não estar à altura da própria imagem. No fim, o dia acaba como começou: entre frases literárias, cigarros apagados e a certeza de que talvez tudo fosse só pose. Ou não.

Saraminda tem olhos verdes, corpo generoso e uma trajetória que já nasceu pronta para o exagero. Vinda da Guiana Francesa, com linhagem de mulheres do bordel e sangue europeu apenas o suficiente para justificar sua beleza exótica, ela se instala no garimpo amazônico como quem entra em cena — ou num império — com charme e ambição. Cleto Bonfim, garimpeiro em ascensão e moral vacilante, apaixona-se com a rapidez de quem nunca teve chance. O romance gira em torno desse enlace, conduzido por um narrador que não economiza em adjetivos, nem em analogias minerais: tudo brilha, reluz, arde, mas raramente surpreende. O erotismo é explícito e decorativo, como um relicário com iluminação cênica. A linguagem, por sua vez, oscila entre o épico regionalista e o prosaico galante, sem muito pudor de misturar clichê com solenidade. Saraminda domina a narrativa como se desfilasse sobre a lama — encantadora, teatral, previsível. À sua volta, os homens decaem ou enlouquecem, e a selva, claro, é sempre mais cenário do que ambiente. Há quem leia o romance como metáfora do poder. Outros veem só a metáfora. E alguns, com mais generosidade, enxergam o esforço de um autor que quis escrever sobre paixão, pecado e política com as mesmas mãos que assinam leis e discursos. Tudo depende do tom. E Sarney, nesse ponto, nunca se subestima.

Em algum lugar entre o épico nacionalista e a poesia de almanaque, uma jovem índia de beleza estonteante — e virgindade rigorosamente preservada — encontra um europeu loiro, perdido no meio do mato, que parece mais confuso do que apaixonado. Ela se chama Iracema, tem “lábios de mel” e uma flecha sempre por perto, mas nenhum conflito interior que a impeça de entregar-se à nobre missão de fundar simbolicamente o povo brasileiro. Martim, o português, chega com culpa e bíceps, e juntos eles constroem, com muito lirismo e pouca lógica, a semente de uma nação — ou de um trauma colonial, depende da leitura. A narrativa é repleta de frases cerimoniosas, cheias de palmeiras, rios e suspiros em tupi estilizado. Tudo é natureza e destino, menos o bom senso. A paixão — ardente e platônica na medida certa — culmina no nascimento de Moacir, o filho da conciliação entre povos, enquanto Iracema definha de saudade como se fosse uma alegoria da terra ferida. E talvez seja. Com estrutura de epopeia breve e linguagem entre o sublime e o ornamental, o texto tenta nos convencer de que a dor do amor é o caminho para a identidade nacional. E assim, entre um rio que chora e um guerreiro introspectivo, Alencar crava sua contribuição à mitologia oficial: a fundação da pátria, com tintas românticas, olhar europeu — e nenhuma ironia visível. Ou quase nenhuma.