Há livros que não se escrevem para explicar o passado, mas para continuar fugindo dele. “Mudar: Método” talvez seja, antes de tudo, isso — um relato de fuga. Mas não no sentido tradicional da palavra. Não se trata de uma tentativa de apagar rastros, reinventar a narrativa ou fabricar uma biografia heroica. É uma fuga do tipo mais inquietante: aquela que precisa se narrar para não ceder à paralisia. Porque quando Édouard Louis decide voltar à aldeia onde nasceu, para reencontrar o pai enfermo, ele não está apenas voltando a um lugar físico. Está retornando ao núcleo cru daquilo que o empurrou a se transformar. O romance começa com uma sensação incômoda de deslocamento — uma espécie de falha de tradução entre o que se foi e o que se tornou. E a partir daí, tudo é ruído, atrito, tentativa.
O que Louis põe em jogo não é um simples processo de mudança pessoal. É a anatomia inteira de um esforço de autoinvenção que atravessa o corpo, o sotaque, o modo de andar, de vestir, de desejar — até mesmo o modo de comer e de calar. Nada escapa. É como se ele dissesse: para sair de onde vim, precisei redesenhar cada gesto. Mas ao narrar isso, o autor não faz um inventário vitorioso. Pelo contrário: há cansaço, há vergonha, há dúvidas. Às vezes, há até ternura. Porque por mais que deseje romper com o passado, Louis sabe — ou pelo menos pressente — que não se muda sem carregar consigo vestígios daquilo que nos feriu. Como cicatrizes que doem quando muda o tempo.

A escrita de “Mudar: Método” acompanha essa ambivalência com uma precisão que, em certos momentos, assusta. É uma linguagem que se recusa ao lirismo gratuito, mas que, mesmo assim, sangra. A estrutura do romance, com seus capítulos curtos, como blocos que se sobrepõem em desníveis, parece refletir a própria instabilidade da identidade narrada. Não há linearidade. Há fragmentos, lampejos, repetições. O que poderia soar como limitação, revela-se, na verdade, o ponto mais ousado do livro: Louis se permite escavar as mesmas cenas, as mesmas dores, com palavras novas — ou quase novas. Como quem volta ao mesmo quarto, muitas vezes, para ver se finalmente entendeu por que não consegue dormir ali.
E é nesse ponto que a obra incomoda — positivamente. Porque ela recusa o conforto da superação. Mudar, aqui, não é sinônimo de salvar-se. É apenas sobreviver com alguma dignidade. Há, sem dúvida, uma dimensão ética nessa escrita. Uma recusa em romantizar o esforço de ascensão social. Porque Louis sabe que o preço é alto. O preço é o silêncio imposto à própria origem. É não saber mais qual voz usar num telefonema. É olhar para trás com nojo e com saudade. E é, talvez, o reconhecimento mais honesto que o livro oferece: mudar é perder também. Perder linguagem, afetos, espontaneidade, até o direito de voltar. O retorno que ele narra não é redentor. É desconfortável, necessário e… nu.
O mais curioso é que, ao narrar esse percurso, o autor não se coloca como herói. Ao contrário. Ele é a personagem que se recria a partir de estratégias de sobrevivência. Lê obsessivamente os autores “certos”. Observa como os burgueses se vestem. Treina como disfarçar o corpo. Estuda como se comportar à mesa. E tudo isso com uma intensidade que beira o desespero. Não há charme algum nesse processo. O que há é um gesto de sinceridade brutal, quase exaustiva. Como se ele dissesse ao leitor: veja, eu não mudei porque quis. Mudei porque era morrer ou me tornar outro.
Aliás, uma das grandes virtudes do romance é a maneira como ele interroga a própria ideia de método. Afinal, que método é esse? Há uma série de passos? Uma lógica aplicável? A leitura logo revela o contrário: o “método” de Louis é feito de tentativas, ensaios, recaídas. Ele tenta ser outro, sim — mas não porque sabe quem quer ser. Ele tenta ser outro porque não suporta o que é. E nessa tensão, o livro nos devolve uma pergunta que não se responde com facilidade: até que ponto é possível mudar sem desaparecer?
Sim, há ecos. A crítica já apontou que Louis se repete. Que seus livros percorrem temas semelhantes — a violência social, a vergonha de classe, a identidade em trânsito. Mas talvez seja esse o ponto: certas histórias não terminam. Certas feridas precisam ser contadas várias vezes, de ângulos distintos, com respirações diferentes. Porque não se trata de acumular conteúdo, mas de ir mais fundo. E em “Mudar: Método”, essa profundidade está no desconcerto. No silêncio das cenas mais banais. No modo como o autor diz “não sei” sem medo de parecer frágil. Aliás, é aí que ele se mostra mais forte.
A certa altura da leitura, fica claro: esse não é um romance sobre “chegar lá”. É, quem sabe, sobre a impossibilidade de saber onde é “lá”. Porque quando se muda tanto, tão rápido, tão radicalmente, já não há um lar para voltar. Há apenas versões de si mesmo — e nenhuma delas é totalmente confiável. O eu narrador se vê e se desconfia. Revê o pai e se envergonha. Reconhece a criança que foi e a despreza, mas… também a acaricia, de leve. Essa contradição é o pulso do livro. E é ela que o torna tão humano.
“Mudar: Método” é um livro que não oferece consolo. E isso é um mérito. Não porque a dor seja bela — ela não é. Mas porque o gesto de nomeá-la, de investigá-la, de não fugir daquilo que nos destruiu parcialmente, é talvez o mais radical dos atos literários. Louis escreve como quem rasga um tecido já remendado. E faz isso não para posar de mártir, mas para entender, enfim, de que matéria é feito esse desejo imenso — e falho — de se tornar outro. Talvez mudar seja isso mesmo: um método sem garantia. Uma tentativa infinita. E uma pergunta que insiste: será que, agora, alguém vai me reconhecer?