A construção da identidade é um processo dinâmico, causado por vários fatores. Desde tenra idade, internalizamos princípios, crenças e comportamentos observados nos meios sociais que frequentamos. A família, a escola e os grupos de convivência exercem papel de suma importância na constituição ontológica de cada um. A linguagem e os símbolos culturais também definem a maneira como os indivíduos percebem-se e são percebidos pelos outros. Hoje, imprensa e redes sociais, nessa ordem, ditam modelos e padrões que acabam por fundamentar as relações, que nem sempre desenrolam-se com a limpidez recomendada.
O desejo de pertencer, de fazer parte de um grupo, de um clube de iluminados, de arúspices que chegam à sabedoria misteriosa do mundo antes que os outros, é uma estratégia de adaptação social, até de sobrevivência, mesmo que envolva riscos. Alegar ter passado uma tarde inteira deliciando-se com certo livro — quando, na verdade, o sono foi mais forte — não é nenhum crime. Quem lê costuma ser mais inteligente, sensível e ético. Assim, reconhecer que não leu um livro “obrigatório” torna-se um atestado de negligência intelectual, consigo mesmo e com os outros. Essa idealização crava um paradoxo: a leitura é indício de uma alma virtuosa, porém é usada para que se atinja um objetivo fraudulento. Mentir sobre a intimidade com um livro qualquer é um expediente a que alguém recorre para proteger sua reputação e afirmar-se socialmente desejável.
O medo de asseverar a própria ignorância é um espectro que sempre há de rondar o gênero humano. Alguém que admite nunca ter lido “Guerra e Paz” (1867), de Liev Tolstói (1828-1910), ou “Ulisses” (1922), de James Joyce (1882-1941), épicos de naturezas distintas, pode ser encarado como portador de algum severo desvio de caráter. O temor do julgamento leva muitos a sustentar uma mentirinha tola, tudo para evitar um constrangimento monumental. Associando-se a determinados autores ou obras, o leitor aspira a melhorar a ideia que os outros fazem de si, almejando uma validação bastante subjetiva, mas manifesta. Na academia, claro, o ditame de não poder ficar para trás é a regra, mas em todo lugar emerge uma disputa pela superioridade do pensamento. “Guerra e Paz” e “Ulisses” entram na mira daqueles que não tem a menor intenção de confessar sua rudeza de espírito, e por essa razão são aqui citados, na companhia de mais cinco, como publicações “duvidosas”, cujo renome gera mais espuma que substância. Elas continuam relevantes, quer as leiamos ou não.

“Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, é uma obra-prima do realismo mágico que narra a saga da família Buendía ao longo de sete gerações na fictícia cidade de Macondo. Com uma prosa rica, poética e envolvente, Márquez mistura o fantástico com o cotidiano, criando um universo onde o irreal se torna natural. O romance explora temas profundos como o tempo cíclico, o destino, a solidão e a repetição dos erros familiares. A história começa com José Arcadio Buendía, fundador de Macondo, e acompanha seus descendentes em uma espiral de paixões, guerras, descobertas e tragédias. Cada personagem, com suas particularidades, contribui para a atmosfera onírica e melancólica que permeia o livro. A escrita de Márquez encanta pelo lirismo e pela capacidade de transformar eventos banais em experiências mágicas. Mais do que uma simples narrativa familiar, o romance é uma alegoria da história da América Latina, marcada por conflitos políticos, colonização e uma busca incessante por identidade. “Cem Anos de Solidão” não é apenas uma leitura, mas uma imersão em um universo encantado e trágico, que permanece atual e impactante. É uma obra essencial para quem deseja compreender a força da literatura latino-americana.

“O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, é uma obra fundamental do pensamento feminista e existencialista do século 20. Publicado em 1949, o livro analisa a construção social da mulher e denuncia como ela foi historicamente reduzida à condição de “outro” em relação ao homem. A autora utiliza diversas áreas do conhecimento — filosofia, biologia, psicanálise, história e literatura — para demonstrar que a condição feminina não é natural, mas sim resultado de uma opressão sistemática e culturalmente sustentada. Beauvoir critica a ideia essencialista de que a mulher nasce com um destino biológico fixo e mostra como essa concepção legitima sua submissão. Ela afirma que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, destacando o papel da sociedade na formação da identidade feminina. A autora também examina os mitos e estereótipos que cercam o feminino, revelando como esses discursos perpetuam a desigualdade entre os sexos. O livro propõe a libertação da mulher por meio da autonomia, do trabalho e da recusa ao papel imposto pela tradição. Sua análise permanece atual ao revelar as raízes profundas do patriarcado. Com uma escrita densa e crítica, Beauvoir oferece não apenas uma denúncia, mas também um chamado à emancipação, contribuindo decisivamente para o avanço das lutas feministas.

Publicado em 1924, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, é uma obra-prima da literatura moderna que mergulha nas complexidades do tempo, da doença e da existência humana. A narrativa acompanha Hans Castorp, um jovem engenheiro alemão que visita um sanatório nos Alpes suíços para ver seu primo doente e acaba permanecendo lá por sete anos. Ao longo de sua estadia, Hans passa por uma profunda transformação intelectual e espiritual, influenciado por personagens simbólicos como Settembrini, defensor da razão e do humanismo, e Naphta, que representa o misticismo e o autoritarismo. O romance, com seu ritmo deliberadamente lento, explora o tempo subjetivo e utiliza o espaço isolado do sanatório como metáfora para a Europa pré-Primeira Guerra Mundial — doente e à beira de um colapso. Mann utiliza diálogos filosóficos densos e descrições minuciosas para discutir temas como a morte, a moralidade, o progresso e a natureza humana. “A Montanha Mágica” é uma leitura exigente, mas recompensadora. Sua riqueza simbólica e profundidade intelectual fazem dela uma obra fundamental para quem busca compreender as tensões espirituais e culturais do início do século 20. É um livro que desafia o leitor a refletir sobre o tempo, a vida e os limites da razão.

Publicado em 1922, “Ulisses” é uma dessas obras desafiadoras e revolucionárias da literatura moderna. Escrito por James Joyce, o romance é uma releitura moderna da Odisseia de Homero, ambientada em Dublin, durante um único dia: 16 de junho de 1904. A história acompanha três personagens principais — Stephen Dedalus, Leopold Bloom e Molly Bloom — cujas vidas se entrelaçam de maneiras simbólicas e existenciais. Joyce utiliza técnicas narrativas inovadoras, como o fluxo de consciência, paródias estilísticas e múltiplos pontos de vista, oferecendo uma experiência literária densa e complexa. A obra explora temas como identidade, sexualidade, alienação, linguagem e a busca por sentido na vida cotidiana. O protagonista, Leopold Bloom, é uma figura moderna de Ulisses, vagando por Dublin enquanto enfrenta pequenas grandes odisseias pessoais. A linguagem do livro é rica, experimental e muitas vezes desconcertante, o que pode tornar a leitura desafiadora, mas também profundamente recompensadora. Joyce rompe com a linearidade tradicional da narrativa, o que exige do leitor atenção redobrada e abertura à interpretação. O último capítulo, o monólogo de Molly Bloom, é um marco da literatura moderna, celebrando a subjetividade feminina e a liberdade do pensamento. “Ulisses” é, acima de tudo, um tributo à complexidade do ser humano e à poesia escondida no ordinário. Por sua ousadia estética e profundidade filosófica, permanece uma obra fundamental do século 20.

“Guerra e Paz” é uma das obras-primas da literatura universal. Escrito por Liev Tolstói, o romance retrata a invasão napoleônica na Rússia e seus impactos na aristocracia russa, mesclando ficção e história real. A narrativa acompanha as trajetórias de personagens centrais como Pierre Bezúkhov, Andrei Bolkonski e Natasha Rostova, cujas vidas são entrelaçadas por conflitos amorosos, dilemas morais e o caos da guerra. Tolstói explora com profundidade a complexidade da natureza humana, questionando o heroísmo tradicional e oferecendo uma visão crítica sobre o papel dos líderes militares e das grandes narrativas históricas. O autor utiliza uma linguagem densa e detalhista, aprofundando-se em reflexões filosóficas e existenciais que desafiam os limites do romance tradicional. Além disso, rompe com convenções ao inserir longos ensaios sobre história, livre-arbítrio e destino, criando um híbrido entre romance, crônica histórica e tratado filosófico. A crítica à futilidade da guerra e à vaidade da elite russa é constante, revelando a sensibilidade de Tolstói para as contradições sociais e humanas. “Guerra e Paz” é, acima de tudo, uma obra monumental que convida o leitor à contemplação profunda da vida, da morte e do sentido da existência diante do turbilhão histórico.

Estruturada em três partes — Inferno, Purgatório e Paraíso —, a “A Divina Comédia” acompanha a jornada alegórica de Dante pela alma humana em busca da redenção. Guiado por Virgílio e, posteriormente, por Beatriz, o autor percorre os três reinos da vida após a morte, revelando uma cosmovisão profundamente cristã e medieval. Cada canto da obra é repleto de simbolismos teológicos, filosóficos e morais, refletindo tanto os valores da época quanto as convicções pessoais de Dante. A crítica social e política é uma marca notável da obra: Dante não hesita em colocar figuras históricas e contemporâneas suas em diferentes círculos do Inferno ou do Paraíso, segundo seu julgamento ético. A linguagem poética, o uso do terceto encadeado e a riqueza de imagens fazem da Comédia uma obra de rara beleza e complexidade. Contudo, sua densidade simbólica pode tornar a leitura desafiadora para o público moderno. Ainda assim, o poema permanece atual ao tratar de temas universais como justiça, fé, amor e redenção. Ao transcender os limites da religião e da política de sua época, “A Divina Comédia” continua a instigar reflexões sobre a condição humana e o sentido da existência.

“A República”, escrita por Platão no século 4º a.C., é uma das obras mais influentes da filosofia ocidental. Estruturada em forma de diálogo, principalmente com Sócrates como protagonista, a obra discute a justiça, a natureza da alma e a organização ideal da sociedade. Platão propõe uma cidade ideal governada por filósofos-reis, cuja sabedoria garantiria uma administração justa e racional. Ele divide a sociedade em três classes: os governantes (razão), os guardiões (espírito) e os produtores (desejo), refletindo uma concepção tripartida também da alma humana. A crítica central de Platão recai sobre a democracia ateniense, que ele via como desordenada e propensa à tirania. Seu modelo de Estado ideal é, ao mesmo tempo, utópico e autoritário, já que defende a censura e o controle da educação. A alegoria da caverna, presente no livro 6, simboliza a busca filosófica pela verdade além das aparências sensoriais. Embora seu projeto político possa ser questionado por seu caráter antidemocrático, a obra permanece relevante por abordar questões fundamentais sobre justiça, poder e conhecimento. “A República” desafia o leitor a repensar o papel da filosofia na vida pública e o que constitui uma sociedade verdadeiramente justa.