10 vezes em que o cinema provou que Deus está morto (e ninguém avisou o roteirista)

10 vezes em que o cinema provou que Deus está morto (e ninguém avisou o roteirista)

No século 19, Friedrich Nietzsche (1844-1900) matou Deus. Claro que essa foi mais uma das tantas provocações do filósofo alemão, um pessimista bastante peculiar, o pessimismo dionisíaco, que enxergava o sofrimento como parte indissociável da jornada do homem neste plano no qual residia a força mesma para vencê-lo. Nietzsche não ousou confrontar o cânone teológico ao fazer tal declaração, mas alertar para a perda de valor e significado da experiência humana com o transcendente, mais e mais questionado e repelido pelos intelectuais de seu tempo. Em muitas circunstâncias, o cinema, como manifestação artística e prática cultural, não só ecoa o clamor nietzschiano como o ratifica ao ressaltar uma certa apatia do Todo-Poderoso frente à barbárie, ao desdém pela ética e pela moral, à alienação feita ideologia, à secularização enganosa, que garante progresso e redunda em insensibilidade e violência, reflexos do vazio existencial, do colapso dos princípios, da fé diminuída pela razão cega e absoluta.

Um dos exemplos mais categóricos da ausência de Deus no cinema está na obra do sueco Ingmar Bergman (1918-2007), especialmente em sua Trilogia do Silêncio: “Através de um Espelho” (1961), “Luz de Inverno” (1963) e “O Silêncio” (1963). Nestes filmes, Bergman investiga a fé, o sofrimento e a busca por um Deus que parece ausente, desinteressado, morto. Em “Luz de Inverno”, um pastor que perdeu a fé continua a celebrar cultos, mesmo sem acreditar na presença divina. O filme desmascara a institucionalização da fé como ritual vazio. A ausência de Deus não é apenas uma sensação: é um fato consumado para seus personagens. Bergman, influenciado por Søren Kierkegaard (1813-1855), mostra a angústia que brota quando o sagrado desaparece e fica apenas o homem e sua solidão. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um evento que abalou profundamente a fé na humanidade — e na existência de um Deus justo. O cinema de guerra ou de holocausto frequentemente encena essa ruptura. Em “O Pianista” (2002), de Roman Polanski, vemos a história real de Władysław Szpilman (1911-2000), um judeu polonês que sobrevive à ocupação nazista em Varsóvia.

Ao longo do filme, não há espaço para a intervenção divina. A sobrevivência depende da sorte, da astúcia ou da bondade eventual de algum outro ser humano, como o oficial alemão que o ajuda no desfecho. Deus não é só ausente: parece ter querido abandonar o palco da história de uma vez por todas. Ainda mais perturbador é “Shoah” (1985), documentário de Claude Lanzmann (1925-2018). Sem imagens de arquivo e recorrendo apenas a entrevistas e locações reais, Lanzmann faz uma denúncia brutal e chocante acerca da matança de dezenas de milhares de judeus nos campos de extermínio ocultos por entre as florestas e aldeias da Europa Central. O diretor recusa qualquer forma de metafísica ou redenção: a selvageria de Hitler é retratada como um abismo intransponível, diante da qual não cabe nenhuma justificativa do sofrimento, a teodiceia de Nietzsche.

Se na modernidade houve uma luta entre a fé e o ceticismo, o cinema pós-moderno muitas vezes assume como premissa a inexistência de sentido absoluto. Além das histórias de Bergman, Polanski e Lanzmann, cineastas a exemplo de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) também demonstram um gosto por colocar o dedo nas chagas do desespero sem remédio. Em “Salò ou os 120 Dias de Sodoma” (1975), Pasolini vai muito além do trivial ao registrar o desconforto e a loucura adonando-se dos indivíduos quando percebem que estão encarcerados em sociedades autoritárias, consumistas, que condescendem e até se alegram com a angústia e o pesar de seus cidadãos. Lars Von Trier, por seu turno, prefere ater-se à estrita intimidade das relações.

Um dos idealizadores do movimento Dogma 95, Von Trier compõe em “Anticristo” (2009) um mosaico de emoções, tétrico e fascinante, na medida em que tem por alvo um casal que, após a morte do filho, refugia-se numa cabana, onde seus traumas internos tomam corpo. O dinamarquês entra na nossa lista pela segunda vez com “Dançando no Escuro” (2000), drama musical insólito protagonizado por uma imigrante checa nos Estados Unidos, trabalhando exaustivamente numa fábrica para dar ao filho um destino menos trágico que o dela. “Salò ou os 120 Dias de Sodoma”, “Anticristo” e “Dançando no Escuro” juntam-se a outros títulos que quase provam que Nietzsche escreveu certo por linhas bem tortas. Como nem tudo é permitido, segundo diz Fiódor Dostoievski (1821-1881) em “Os Irmãos Karamázov” (1879), há de haver uma esperança para o homo sapiens sapiens, a mais desgraçada espécie da Criação.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.