Há quem diga que certos livros são perigosos. Mas o que dizer de um livro que incomoda até Deus? Não o Deus de velas e promessas, mas aquele mais antigo, que sussurra entre as páginas, que aparece e desaparece conforme o silêncio da linguagem. Alguns autores souberam olhá-lo sem desviar os olhos — ou talvez, sem pedir permissão. Não por arrogância, mas por sobrevivência. Porque em algumas histórias, é o próprio sagrado que precisa ser interrogado com a mesma severidade com que julgou.
Escrever sobre Deus não é tarefa de profetas, mas de insolentes. Quem se curva diante da verdade revelada escreve orações. Quem desconfia, escreve literatura. É esse segundo grupo que interessa aqui. Os que não aceitaram a narrativa oficial. Os que perceberam, cedo demais, que fé sem dúvida é só obediência com verniz. Alguns deles provocam; outros, apenas perguntam. E há os que escrevem como quem faz justiça — ainda que poética, ainda que impossível.
Esses livros não têm a intenção de destruir o divino. Ao contrário, talvez sejam uma forma desesperada de mantê-lo vivo. Mas vivo de verdade — com suas contradições, sua crueldade, sua beleza impronunciável. E se Deus pede um advogado, talvez não seja por ter sido ofendido, mas por saber que esses textos expõem mais do que negam. Mostram o abismo entre o Criador e sua criatura com a nitidez que só a linguagem permite.
Cada autor desses construiu sua heresia como quem escreve uma carta a um pai ausente: cheia de mágoa, mas ainda esperando resposta. É nessa tensão que essas obras respiram. Nem dogma, nem desdém. Apenas a convicção íntima de que, se existe um Deus, ele há de aguentar ser lido sem reverência. Porque o contrário disso seria covardia. E, como se sabe, não é a dúvida que mata a fé — é o medo de fazer as perguntas certas.

Um homem assassina o próprio irmão e é condenado, não pela justiça dos homens, mas pela ausência de misericórdia de um Deus que tudo vê e tudo permite. Expulso de seu tempo, Caim se torna um errante das Escrituras, atravessando episódios do Antigo Testamento como quem revisita os erros de um criador autoritário. Ele presencia o sacrifício de Isaque, o extermínio de Sodoma, o dilúvio — não como testemunha reverente, mas como acusador. A narrativa em terceira pessoa adere ao protagonista com sarcasmo e desconfiança, recusando qualquer santidade de forma ou conteúdo. Em vez de absolvição, Caim busca sentido: por que os inocentes sofrem, por que os justos calam, por que Deus insiste em repetir a tragédia? O texto avança com ritmo ágil, pontuação atípica e diálogos em espiral, provocando o leitor a revisar não apenas a fé, mas o próprio ato de contar histórias sagradas. Aqui, o Gênesis é desmontado peça por peça, não para destruir — mas para mostrar onde faltam perguntas. Nenhuma lição é entregue. Nenhuma redenção é garantida. Saramago oferece uma sátira que se lê como testamento ao direito de duvidar, com um personagem que sangra menos pelo crime que cometeu do que pelas verdades que se recusa a aceitar. O paraíso, afinal, pode ser só uma ausência bem contada.

Ela é anônima, viveu há milênios, e foi escolhida para escrever o que nenhum homem ousaria confessar. Numa estrutura de confissão inventada — mas emocionalmente crível —, a protagonista narra, em primeira pessoa, como uma mulher considerada “a mais feia do harém do rei Salomão” se torna, por força de um dom e uma ironia divina, a escriba dos livros sagrados. O texto mistura memória, fantasia, erotismo e sátira histórica, transitando entre os ecos do Antigo Testamento e a intimidade de uma voz feminina que redige o mundo a partir do desejo, da exclusão e da palavra. A narrativa é irreverente, mas não cínica; divertida, mas dolorosa. A linguagem brinca com anacronismos, registros solenes e termos modernos, construindo um efeito de deslocamento que reforça o absurdo do poder masculino sobre o sagrado e o corpo. Moacyr Scliar articula o riso com o espanto, a dúvida com a invenção, e transforma a Bíblia — livro de homens e para homens — em cenário de uma vingança sensível e literária. A personagem não quer salvar ninguém: ela quer escrever. E ao escrever, rompe o mito, a ordem, o tempo. Nenhum versículo permanece intocado depois da sua voz. Porque o que ela narra não é a fé — é a fome de existir nas páginas que a silenciariam.

Entre os ecos da carpintaria e as sombras das cruzes por vir, caminha um homem que carrega o peso de um destino escrito sem seu consentimento. A história segue a vida de Jesus desde o nascimento até a morte, mas não como nos evangelhos canônicos: aqui, ele é um filho que duvida do pai, um jovem tocado pela ternura e pelo desejo, um homem que questiona a lógica de um mundo governado por um Deus que exige mais fé do que compaixão. A narrativa, em terceira pessoa, se mantém próxima, quase cúmplice, revelando um Cristo interiorizado, contraditório, profundamente humano — e, justamente por isso, comovente. O autor costura as passagens bíblicas com costura grossa e literária, inserindo diálogos entre Deus, o Diabo e Jesus que não procuram conciliação, mas enfrentamento. A prosa, marcada por longos períodos, pontuação escassa e um ritmo hipnótico, cria uma sensação de fábula invertida, onde o sagrado é interrogado e o milagre é linguagem. Não há herege, apenas narrador. Não há blasfêmia, apenas literatura. Tudo o que se acreditava fixo — o bem, o mal, o amor, o sacrifício — reaparece aqui deslocado, lido por dentro, fora do altar. O resultado não é um ataque, mas uma pergunta que nunca se fecha.

Antes de ser filósofo, romancista ou militante, ele foi um menino cercado de livros — e de ausências. Nesta autobiografia intelectual, dividida em duas partes (“Ler” e “Escrever”), a infância de Sartre é narrada com lucidez ácida e ternura disfarçada, desmontando qualquer idealização do crescimento. A voz, em primeira pessoa, é confessional e analítica, mas sempre irônica: ele expõe sua própria formação como quem disseca um personagem construído pelas palavras dos outros — avós, professores, autores mortos. A leitura aparece primeiro como abrigo, depois como vício, e enfim como impostura. A escrita, como farsa inicial, torna-se ferramenta de domínio e, por fim, de libertação. O texto alterna memórias detalhadas e digressões filosóficas, mas nunca perde o ritmo de quem fala consigo mesmo sem autopiedade. Não há redenção, nem grandes traumas, apenas uma vida vista com a frieza de quem sabe que se inventou. A linguagem é sofisticada, elegante, atravessada por referências culturais e psicanalíticas, mas sempre dirigida por um humor seco e autoimpiedoso. Sartre expõe a si mesmo não como exemplo, mas como sintoma: de uma infância burguesa, de um século cheio de ruínas morais, de um mundo onde a palavra precede o amor. É uma autobiografia sem nostalgia — e talvez por isso, tão precisa. Um livro que fala, mas nunca pede para ser ouvido.

Não há história, há um grito. Um livro escrito como se cada sentença carregasse pólvora e destino, disparado em primeira pessoa contra dois mil anos de valores cristãos. O autor, em seu momento mais incendiário, abandona qualquer ilusão de conciliação: o cristianismo é, para ele, uma moral de escravos, um sistema construído sobre a negação da vida, da força, do instinto, da terra. Em um fluxo contínuo de aforismos, exortações e sentenças cortantes, ele questiona não apenas os dogmas da fé, mas a própria noção de verdade revelada. O que há aqui não é filosofia no sentido acadêmico — é denúncia, é combate. O tom é profético, colérico, e cada página parece atravessada por uma urgência que se recusa a ser argumento. Deus não é combatido como conceito, mas como decadência. Cristo, separado do “cristianismo”, é poupado como exceção ética, enquanto Paulo e os evangelistas são acusados de institucionalizar a fraqueza como virtude. A linguagem, sem filtros, recusa o tom conciliador e abraça a blasfêmia como método. É menos um livro que um corpo de guerra: escrito para ferir, não para convencer. Ao fim, não há convite ao debate — apenas a afirmação brutal de um pensamento que prefere o abismo à mentira útil. E por isso ainda fere.