É difícil nomear o que não se fecha. Há dores que continuam ali, mesmo depois que o corpo se recompõe. A pele, sabemos, mente bem. Ela cobre, disfarça, mascara o que dentro ainda se movimenta com a mesma urgência do primeiro impacto. E é por isso que certas histórias não curam — apenas voltam. Não por escolha, mas porque permanecer é o único modo possível de dizer “ainda estou aqui”.
A cicatriz, essa marca persistente, não é apenas um vestígio. É uma forma de linguagem. Não grita, mas se impõe. Às vezes arde sem motivo. Às vezes sussurra quando o mundo está calado. E há livros que são exatamente isso: cicatrizes escritas. Não para embelezar a dor — isso seria trair a matéria —, mas para não permitir que ela se apague sem testemunho.
Nestes relatos, não há metáforas confortáveis, nem resoluções didáticas. O que se encontra é o desconforto do vivido exposto em primeira pessoa. Um trauma infantil narrado sem piedade nem exagero. Um corpo feminino invadido e reescrito em silêncio. A tentativa, quase impossível, de amar um pai que nunca soube como ser. O vínculo feroz entre mãe e filha, tão inquebrável quanto insuportável. São vozes que não se erguem para convencer, mas para resistir.
É preciso disposição para ouvir o que não quer ser dito. Para ler o que ainda sangra. Porque há dor que se organiza em palavras não para ser entendida, mas para que o outro — talvez nós — possa carregá-la junto, por um instante que seja. E se há algo de cura nisso, ela é parcial, frágil, intransitiva.
Essas narrativas não respondem à pergunta do título. E nem deveriam. O que elas fazem é outra coisa: transformam a cicatriz em traço, em ritmo, em voz. E, ao fazerem isso, abrem espaço para que a dor não seja apenas o que nos aconteceu — mas também o que escolhemos lembrar. Não para curar. Mas para continuar.

Uma mulher revisita, anos depois, o lugar onde foi violentada. O gesto de voltar não é apenas geográfico — é físico, íntimo, textual. A narrativa se desenrola em fragmentos que tentam costurar um corpo estilhaçado, como se a linguagem pudesse tocar onde as palavras já não alcançam. A voz da narradora oscila entre a introspecção lírica e a objetividade dura, num registro emocional que se recusa a ser linear. Não se trata de recontar a dor como confissão ou denúncia, mas de compreendê-la como ferida que transforma o modo de habitar o mundo. O trauma não é o fim, mas o centro em torno do qual tudo passa a orbitar: a maternidade, os afetos, o medo, o desejo, a memória. A cidade também é corpo — um espaço invadido, marcado, cruzado por olhares, sons e ruídos que reverberam no tempo. Em vez de buscar uma resolução ou uma superação, o texto insiste em permanecer: na dor, na dúvida, no gesto de continuar. Com ritmo irregular e imagens que brotam como relâmpagos — ora suaves, ora violentas —, a autora constrói uma narrativa que é ao mesmo tempo testemunho e resistência. Não há heroísmo. Há corpo, voz e a escolha de não esquecer. Um livro que sussurra com força o que tantos tentam calar.

Um filho retorna à figura do pai, agora alquebrado, o corpo comprometido por anos de trabalho pesado e abandono institucional. A voz é íntima, urgente, alternando afeto e revolta, numa tentativa de reconstruir — ou reconfigurar — uma relação marcada pela distância, pela incomunicabilidade e pelos códigos sociais que moldaram seus silêncios. A narrativa é curta, mas densamente política, na medida em que expõe a violência estrutural que opera sobre os corpos das classes trabalhadoras: não apenas a pobreza, mas a humilhação como política de Estado. No entanto, o livro não se limita à denúncia — ele é, acima de tudo, uma carta. Uma carta que reconhece a fragilidade do pai, sem ignorar as violências herdadas, a masculinidade tóxica, a dureza com que reprimiu o filho. Louis escreve a partir do corpo — do próprio e do outro — e o corpo, aqui, é documento: ele carrega as consequências diretas de leis, reformas e omissões. Mas também carrega uma memória de ternura, por vezes hesitante, que a linguagem tenta salvar. Não há concessão emocional nem idealização: apenas uma busca pela dignidade da verdade, mesmo quando ela se apresenta despida de reconciliação. É um ajuste de contas com o passado, sim — mas também com um presente em que nomes e decisões políticas matam silenciosamente, todos os dias.

Uma mulher adulta retorna à tarde exata em que sua infância deixou de ser possível: o momento em que presenciou o pai ameaçando a mãe com uma faca. O acontecimento é narrado não com o espanto de uma criança, mas com a frieza da memória que se tornou indelével. A partir dessa cena, tudo muda. A escola, os colegas, os gestos mais simples — tudo passa a ser atravessado por uma sensação de deslocamento irreparável. A voz que conduz o texto é contida, objetiva, quase documental, como se a linguagem pudesse proteger a narradora da intensidade emocional que o episódio carrega. Mas o que se lê é justamente o que escapa: o incômodo do que não foi dito, a inquietação de um trauma que nunca chegou a ser dramatizado, apenas absorvido. A narrativa evita julgamentos, explicações ou sentimentalismos, e se concentra no modo como um único instante redesenha toda uma estrutura de mundo. O bairro, a religião, a classe social, os livros, a vergonha — tudo se reconfigura em torno de um silêncio que persiste. O que permanece é menos a dor explícita e mais a fratura sutil da identidade, o descompasso entre o antes e o depois. Um texto breve, mas imenso em reverberação, que transforma a memória em bisturi — e a linguagem em cicatriz que se recusa a fechar por completo.

Duas mulheres — mãe e filha — caminham pelas ruas de Nova York, em percursos diários que se tornam espelhos, abismos e confessionários. A narradora, adulta, intelectual, independente, tenta compreender a figura materna que moldou sua formação com rigidez, dependência emocional e uma força tão poderosa quanto opressiva. A relação entre as duas é marcada por silêncios e discussões, proximidades sufocantes e afastamentos impossíveis. Não há catarse, nem resolução. O que há é uma convivência densa, atravessada por ressentimentos, amor e um apego que se manifesta mais como embate do que como afeto tradicional. A narrativa intercala memórias de infância, reflexões políticas e íntimas, episódios marcantes e momentos triviais — todos carregados de um subtexto emocional profundo. A voz que conduz o texto é afiada, honesta, muitas vezes dura, mas sempre lúcida, disposta a não romantizar o que foi vivido. Ainda assim, por trás da frieza aparente, há um cuidado que se insinua nos gestos e nas palavras que a narradora escolhe — ou evita. O livro não é uma reconciliação, mas uma exposição honesta de um laço que ultrapassa rótulos. Trata-se de uma história de amor não reconciliado, de aprendizado e culpa, onde a maternidade aparece como território ambíguo: de onde se escapa, mas nunca por completo. Um relato de formação em forma de embate contínuo.