Quando o crime vira poesia: por que Sin City continua cult — e ainda incomoda 20 anos depois? Divulgação / Dimension Films

Quando o crime vira poesia: por que Sin City continua cult — e ainda incomoda 20 anos depois?

Há filmes que se propõem a adaptar histórias em quadrinhos. Outros, mais ousados, se dispõem a habitar o universo dos quadrinhos, absorvendo sua linguagem, seus códigos visuais e sua lógica própria. Mas “Sin City: A Cidade do Pecado” vai além disso: ele consome a gramática do pulp e do noir até a medula e a regurgita em forma de uma experiência estética total, radical e intransigente. Em vez de tentar traduzir a atmosfera das graphic novels de Frank Miller para o cinema, Robert Rodriguez opta por fundir os dois mundos numa síntese visual inédita — onde a estilização se impõe como linguagem e não como enfeite. Cada quadro do filme se comporta como um painel de HQ pulsando em preto, branco e vermelho; cada gesto dos personagens, como um fragmento de moralidade primitiva encenado com brutal teatralidade. O que se vê na tela não é uma representação do inferno urbano — é sua encarnação digital.

A topografia emocional de Basin City, espaço onde o filme transcorre, dispensa mapas racionais: é um território dominado por códigos de conduta arcaicos, onde o bem e o mal deixaram de ser opostos e passaram a ser atributos intercambiáveis da mesma violência. Nessa terra crepuscular, habitam figuras que não são personagens no sentido dramático, mas sim ícones saturados de arquétipos: Marv, o ogro sentimental que busca vingança por uma mulher idealizada; Dwight, o fora-da-lei com pretensões de redenção; e Hartigan, o velho policial disposto a se sacrificar por uma inocência já irrecuperável. Cada um deles ocupa uma das três narrativas entrelaçadas que compõem o filme — mas o elo entre elas não é cronológico nem temático. É uma simetria de pulsões: todos estão aprisionados em uma espiral de culpa, desejo e fúria, sem chance de absolvição. O que conecta essas histórias é a certeza de que a redenção, quando existe, tem um preço que sempre se paga em sangue.

O grande feito de “Sin City” não está em sua trama nem na complexidade psicológica de seus protagonistas, mas na radicalidade com que rompe as fronteiras entre forma e conteúdo. A violência explícita, a misoginia destilada e a estética saturada de testosterona não são incidentais: são instrumentos narrativos de um universo moral onde a delicadeza é um risco e a compaixão, um luxo perigoso. O filme, ao invés de camuflar sua brutalidade com camadas de ironia ou tentativas de humanização, opta por intensificá-la até o ponto de ruptura. Mesmo o humor — negro como breu — não funciona como alívio, mas como combustível da selvageria. Em uma das cenas mais emblemáticas, Dwight conversa com o cadáver mutilado de seu inimigo como se trocasse confidências com um velho amigo, revelando o grau de distorção ética que impera na narrativa. Não há pudor, não há recuo: tudo é levado ao extremo, até que a tela transborde de absurdo, violência e beleza gráfica.

A sofisticação do filme reside justamente nesse paradoxo: apesar de ser emocionalmente opaco e narrativamente rudimentar, “Sin City” é visual e simbolicamente exuberante. O uso do preto e branco de alto contraste não remete apenas ao estilo dos quadrinhos, mas funciona como lente moral: o mundo é literalmente binário, mas o sangue — sempre vermelho, sempre em excesso — irrompe como única forma possível de expressão autêntica. Os detalhes coloridos, inseridos pontualmente — um par de olhos verdes, um vestido vermelho, uma pele com cor de pele — surgem como interrupções quase sagradas numa estética de dessensibilização. São vislumbres de humanidade em um universo que parece rejeitá-la. Ainda assim, mesmo nesses lampejos, o filme se recusa a oferecer conforto: não há redenção estável, apenas uma coreografia fatalista em que cada personagem cumpre seu destino com a resignação de quem já entendeu que a tragédia não é exceção, mas regra.

O que permanece, depois do último tiro e da última confissão, não é uma reflexão sobre o bem e o mal, mas um desconforto inquietante diante da sedução do caos. “Sin City” não tenta justificar seu niilismo — ele o estetiza até o limite do tolerável, obrigando o espectador a se confrontar com o fascínio que a barbárie ainda exerce quando bem encenada. Não há hereges nem mártires nesse altar estilizado: apenas figuras condenadas a repetir, em preto e branco, os mesmos gestos de vingança e sacrifício. Ao final, o que está em jogo não é a moral de seus protagonistas, mas a moral do próprio espectador. É um filme que se recusa a consolar, que não pede licença para ser excessivo, e cuja brutalidade se torna, paradoxalmente, sua forma mais sofisticada de arte. Como um soco que atravessa a tela — seco, preciso, sem anestesia.

Filme: Sin City — A Cidade do Pecado
Diretor: Frank Miller e Robert Rodriguez
Ano: 2005
Gênero: Ação/Crime
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★