A experiência de se apaixonar por um livro contra a própria vontade é quase ofensiva — como se ele tivesse vencido uma aposta secreta, como se risse baixinho do nosso ceticismo inicial. A capa parecia genérica. O título, pretensioso. A sinopse? Confusa, talvez até tola. Mas havia algo ali — um desconforto insistente, um certo magnetismo disfarçado de erro — que fez com que, por teimosia ou distração, virássemos a primeira página. A partir daí, o que era suspeita virou rendição. E depois, apego.
Alguns livros têm o dom do atrito. São os que andam na contramão das nossas preferências, dos nossos filtros, da nossa paciência. E é exatamente por isso que funcionam. Eles não nos mimam, não nos seduzem de imediato — nos desafiam. Derrubam a lógica do gosto, bagunçam critérios. Fazem perguntas que não sabíamos que estavam presas entre os dentes. Há algo de profundamente humano nesse tipo de leitura: a surpresa de gostar do que, em tese, não era para ser nosso.
Às vezes, é o idioma — estranho, sujo, inventivo. Às vezes, é o humor — ácido, deslocado, quase cruel. Ou a ausência de enredo, de personagem, de qualquer segurança narrativa. Mas ainda assim, seguimos. Por raiva, por incômodo, por impulso. E em algum ponto da travessia, algo vira. Um parágrafo que nos quebra. Uma frase que nos cala. Uma figura improvável que parece ter vivido dentro de nós o tempo todo. Quando isso acontece, não há mais volta.
Esses livros, os que nos conquistam por falha, por ruído, por desvio — esses são os que ficam. Não pela perfeição. Pelo contrário: porque desafinaram no tom certo, porque tropeçaram de um jeito bonito, porque nos pegaram desprevenidos. E porque, no fim, deixaram uma espécie de silêncio — não o da ausência, mas o da reverberação.

No coração de uma praça pública, um grupo de travestis encontra abrigo e sentido numa espécie de comunidade secreta, onde o afeto e a sobrevivência caminham juntos. Entre elas, uma jovem recém-chegada narra com voz lírica e cortante os dias vividos ao lado de suas novas irmãs — mulheres rejeitadas pelo mundo, mas que constroem entre si um pacto silencioso de proteção. Essa protagonista observa com espanto e reverência a figura da mais velha do grupo, uma mulher enigmática que acolhe a todas como filhas e que, apesar da dureza da rua, representa uma espécie de divindade marginal. A narradora, dividida entre a infância traumática e a possibilidade de uma reinvenção afetiva, desenha um mundo onde o abandono e o amor coexistem com força brutal. As ruas se tornam cenário de rituais, luto, festa e resistência, enquanto o corpo é casa, fronteira e campo de batalha. O tom é poético, áspero e encantado, numa linguagem que afirma uma identidade não como rótulo, mas como invenção contínua. Sem recorrer à piedade ou ao exagero, a história mergulha no cotidiano de quem se recusa a ser apagado, revelando beleza onde só se esperava dor. Trata-se de uma narrativa que mistura denúncia e encantamento, costurada pela coragem de existir à margem e, ainda assim, criar vínculos que sustentam.

Um corpo em trânsito, deslocado entre países, tempos e línguas, fragmenta sua própria narrativa como quem tenta reconstruir-se depois da erosão. A voz que conta esta história não é fixa, mas múltipla — atravessada por memórias partidas, notícias que chegam pela televisão, textos não terminados, e uma espécie de silêncio que preenche o que falta. Nada se apresenta de forma direta: tudo se aproxima pelo desvio, pela metáfora, pela interrupção. A narradora, ora confessional, ora espectral, revela uma subjetividade à deriva, forjada no exílio e na observação constante de um mundo onde o pertencimento é sempre uma promessa adiada. O tom oscila entre a poesia bruta e o ensaio íntimo, com imagens que se sobrepõem como palimpsestos emocionais. Em vez de uma trajetória linear, o texto oferece colagens de pensamento, lembranças inconclusas e ruínas da linguagem — como se o próprio gesto de narrar fosse também uma forma de resistência contra o esquecimento e o apagamento. Cada fragmento, ainda que breve, carrega o peso de um deslocamento irreversível. Trata-se de uma escrita que tensiona fronteiras — geográficas, políticas, corporais — e que encontra no hífen não apenas um sinal gráfico, mas uma condição existencial. Um livro que fala de perdas, partidas e pertencimentos instáveis com uma coragem formal rara e necessária.

Após a morte repentina do pai, uma mulher herda não apenas a loja de taxidermia da família, mas também o peso sufocante de uma rotina atravessada por silêncios, ressentimentos e ausências mal resolvidas. A narradora, áspera e introspectiva, tenta seguir adiante entre animais empalhados, recordações partidas e um luto que não encontra linguagem. Seu casamento desfeito, a tensão com a mãe e o afastamento do irmão formam um cenário íntimo de desmoronamento afetivo, em que cada gesto carrega o cansaço de anos não ditos. A voz que conduz a narrativa é seca, por vezes cínica, mas nunca indiferente: nela pulsa uma dor embotada, que se manifesta em pequenas obsessões, desvios de rotina e desejos mal endereçados. O corpo — vivo, morto, lembrado ou negado — atravessa toda a trama, servindo tanto como metáfora quanto como matéria física do cotidiano. O texto alterna passagens de humor amargo com momentos de ternura brusca, sempre com uma linguagem direta e sem ornamentos. A protagonista não busca soluções, mas sim alguma forma de resistir à erosão de si mesma. A taxidermia, mais do que profissão, torna-se uma maneira estranha de manter o que já deveria ter desaparecido. Uma narrativa sobre dor, memória e os modos silenciosos com que aprendemos — ou não — a enterrar o que amamos.

Desde a infância, uma menina sente que não pertence ao mundo que a cerca. Ela observa os adultos, seus hábitos e obrigações sociais com uma estranheza que cresce em silêncio. A voz que conduz a narrativa é calma, quase neutra, mas guarda dentro de si um turbilhão de inquietações — sobre o corpo, o desejo, a normalidade e a própria condição humana. Isolada em sua percepção, ela desenvolve explicações paralelas para aquilo que a oprime: o casamento, a maternidade, o trabalho, o ciclo imposto de crescimento e reprodução. Ao lado de outros que compartilham do mesmo desconforto, sua jornada toma rumos cada vez mais extremos, como se o único caminho possível fosse a completa negação do que se espera dela enquanto terráquea. A linguagem do livro, contida e precisa, cria um contraste perturbador com a violência emocional — e literal — que emerge aos poucos. A protagonista não busca cura nem redenção, mas uma forma de existência que se recuse a aceitar o “sistema de fábrica de bebês”, como ela chama a vida adulta convencional. O resultado é uma narrativa radical, perturbadora e profundamente singular, que desmonta as estruturas sociais com uma serenidade incômoda. Um romance que parte da estranheza infantil para alcançar, em silêncio, o horror da adaptação forçada.

Uma investigadora sem ilusões, de olhar ácido e hábitos autodestrutivos, é contratada para encontrar uma adolescente desaparecida — uma jovem rica e inquieta que parece ter fugido de casa, do colégio, da família, e talvez até de si mesma. O que começa como uma rotina de vigilância monótona logo se transforma numa imersão abrupta em um submundo onde a aparência das coisas não sustenta a realidade. A narradora, que alterna entre o tédio e a raiva contida, percorre espaços saturados de contradições: famílias bem-postas, militantes radicais, amizades disfuncionais e bairros em que a violência e o abandono coexistem com uma aparência de normalidade. Ao longo da investigação, as fronteiras entre perseguidora e perseguida se embaralham, até que a busca se torna também uma espécie de autópsia emocional. A linguagem é direta, crua, sarcástica, mas com momentos de fúria lírica que atravessam o texto como faíscas. A protagonista, sem pedir empatia, revela-se mais complexa a cada encontro, enquanto a figura da adolescente desaparecida vai assumindo contornos cada vez mais simbólicos — como se encarnasse uma recusa generacional silenciosa e irreparável. Trata-se de um romance de perseguição onde quem corre e quem observa acabam, ambos, em queda livre. A narrativa expõe uma sociedade exausta e em negação, por meio de personagens que se recusam a fingir que não estão em ruínas.

Num subterrâneo frio e iluminado por luz artificial, dezenas de mulheres vivem confinadas, vigiadas por guardas silenciosos, sem qualquer explicação sobre onde estão, por que estão ali ou o que aconteceu no mundo lá fora. Entre elas, uma jovem é a única que nunca conheceu o exterior, os homens, o afeto ou a linguagem compartilhada pelas demais. Sua voz, assombrada e lúcida, narra uma existência marcada não pela dor explícita, mas pela ausência total de sentido — e pela tentativa persistente de construir algum. Quando o regime de vigilância abruptamente colapsa, o que se abre diante dessa narradora não é a liberdade, mas o abismo de um mundo sem garantias, pistas ou passado. Ela atravessa paisagens áridas em busca de qualquer vestígio de humanidade, guiada apenas por perguntas que ninguém responde. A narrativa assume um tom austero, filosófico, feito de silêncio e sobrevivência, onde cada gesto ganha densidade simbólica. O texto é seco, preciso, e ainda assim profundamente sensível. A protagonista, sem nome, sem história e sem promessa de futuro, transforma sua solidão extrema numa forma radical de consciência. Trata-se de uma meditação sobre o que resta do humano quando tudo desaparece — instituições, linguagem, história, companhia — e ainda assim a vida insiste. Um relato assombroso, sem consolo e inesquecível.