A literatura sempre foi um poderoso veículo para transmitir ideias, valores e crenças. Dos épicos do Mundo Antigo aos romances dessa insana era contemporânea, autores usam a ficção como espelho de seu tempo e como meio de guiar consciências. Entre os muitos gêneros literários que povoam as prateleiras das livrarias, um nicho crescente e polêmico se destaca: a literatura cristã. Na aparência, são histórias comoventes, muita vez centradas na superação pessoal, nos dramas familiares e na mudança de vida. Entretanto, por baixo da narrativa, esconde-se uma estrutura ideológica que aponta para valores cristãos tradicionais — e não raro preconceituosos, segregadores, extremistas. Essa modalidade de literatura costuma servir a uma forma sutil de manipulação, por meio de um proselitismo velado que vende-se como entretenimento.
Nos últimos anos, títulos como “Em seus passos o que faria Jesus?” (1896), de Charles Sheldon (1857-1946); “A Cabana” (2007), de William P. Young; “O Quarto de Guerra” (2016), de Chris Fabry; e a série “Deixados para Trás” (1997-2007), de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins, alcançaram grande sucesso de vendas. Em comum, essas obras apresentam linguagem acessível, tramas emocionais e, sobretudo, uma óbvia mensagem cristã, ainda que nem sempre explicitada na sinopse ou no marketing em redor do livro. O mercado editorial percebeu o apelo massivo do gênero e dobrou a aposta nos enredos que, vendidos como ficção generalista ou “inspiradora”, têm por baixo intenções catequéticas. Esse fenômeno demonstrou um vigor especial nos Estados Unidos, mas seu alcance capturou todo o globo com traduções e adaptações cinematográficas que ampliaram o público e a influência das mensagens contidas nessas publicações.
Os autores que produzem literatura cristã disfarçada de ficção frequentemente recorrem a estratégias narrativas específicas para transmitir valores e crenças religiosas de forma sutil. Recorrem a personagens arquetípicos e suas conversões redentoras, que saem de crises existenciais profundas, doenças, lutos, divórcios, fracassos profissionais. A resolução desses dramas ocorre quase invariavelmente por meio de uma volta à fé cristã. A reconciliação com o sagrado é a única saída possível, conferindo à fé um caráter de verdade absoluta, sem salvação fora das igrejas, mormente as pentecostais e neopentecostais. Ateus, agnósticos ou fiéis de outras religiões são retratados como perdidos, egoístas ou moralmente falhos. Quando esses personagens arrependem-se ou “veem Deus”, tem a vida transformada. Ficcionistas cristãos também têm o hábito de apelar para o sobrenatural como meio de validação da fé. Anjos, com a licença do trocadilho, caem do céu, orações são atendidas de imediato, enfermos são curados por força divina. Tais recursos, malgrado comezinhos na ficção religiosa, ganham contornos delicados na medida em que são dispostos para fazer o leitor tomar o ponto de vista cristão como a norma. Tal expediente redunda em sermões moralistas, que nada têm de edificantes, pelo contrário. O amor incondicional pelo próximo pregado por Jesus vira intolerância, ataque e, nos piores casos, justificativa para agressões.
A pergunta central que surge diante dessas obras é: até que ponto estamos diante de uma literatura inspiradora e em que momento ela se torna manipuladora? A inspiração é, por definição, subjetiva e desejável em qualquer manifestação artística. Um romance que leva o leitor à reflexão profunda sobre sua vida, seus valores e suas crenças pode ser extremamente positivo, mesmo que tenha um viés religioso. No entanto, a manipulação ocorre quando há uma tentativa deliberada de influenciar crenças de forma encoberta, utilizando emoções e dramas humanos como armadilhas psicológicas. Quando um livro se apresenta como mero entretenimento ou ficção universal, mas gradualmente conduz o leitor a um sistema doutrinário específico, há um problema ético. O leitor, especialmente o mais jovem ou emocionalmente vulnerável, pode ser capturado por uma narrativa que parece apenas tocante, mas que, na verdade, está promovendo valores específicos como verdade incontestável.
Leitores de outras religiões ou sem religião frequentemente se sentem traídos ou desconfortáveis com esse tipo de literatura. Não é raro encontrarmos resenhas de leitores que começaram uma obra atraídos pela sinopse e, no meio do caminho, perceberam que estavam imersos em uma narrativa evangelizadora. Isso gera não apenas frustração, mas também um efeito de exclusão simbólica. A literatura, que deveria ser um espaço plural de convivência de ideias e visões de mundo, torna-se uma ferramenta para erguer fronteiras em vez de derrubá-las. Ademais, essa forma de literatura pode alimentar estereótipos negativos sobre quem está fora da fé cristã, reforçando visões reducionistas ou caricaturais de ateus, muçulmanos, judeus, budistas, entre outros.
A literatura cristã disfarçada de ficção é um fenômeno crescente no mercado editorial. Ela se alimenta de histórias emocionantes e personagens cativantes para veicular uma mensagem religiosa específica. Embora não haja nada de errado em autores escreverem a partir de sua fé, há um limite ético que precisa ser respeitado quando a intenção evangelizadora é camuflada sob a aparência de uma ficção neutra. A responsabilidade recai sobre autores, editoras e também sobre os leitores, que devem desenvolver uma leitura crítica e atenta, especialmente diante de obras que despertam fortes emoções e aparentam ter respostas prontas para os dilemas humanos mais complexos. O debate e a reflexão sobre os limites entre fé, arte e persuasão, em nome da honestidade intelectual e do respeito à diversidade de pensamentos e crenças, não pode perder para a mistificação mais pedestre, que persegue, divide e, com frequência inadmissível, termina em sangue.