Discover
Crítico literário no Brasil virou relações públicas de editora

Crítico literário no Brasil virou relações públicas de editora

Críticos literários são uma espécie em extinção. Figuras centrais na mediação entre a obra literária e o leitor, gente como Sílvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916) e até recentemente Antonio Candido (1918-2017) desempenhou na crítica literária papel de formação — e não só na literatura. Entretanto, nas últimas décadas, fatores a exemplo do avanço das redes sociais, a consolidação da internet como o mais forte meio de disseminação do saber e a mudança da lógica do mercado editorial, observamos uma verdadeira (e escandalosa) metamorfose: o crítico literário virou um agente de marketing, um relações públicas das editoras. Em assim sendo, qual deverá ser o papel da crítica especializada neste insano século 21, ainda pleno de surpresas? Tornar-se-ão os influenciadores os novos críticos literários? E o mais fundamental: em que medida isso irá mexer com a qualidade dos livros e do refinamento estético e da importância mesma da literatura? Muitas perguntas.

Historicamente, a crítica literária era praticada por intelectuais comprometidos com a análise estética, histórica e sociopolítica das obras. No Brasil, a crítica desempenhou papel fundamental na legitimação de autores e movimentos literários. Antonio Candido não apenas interpretou obras e autores, mas ajudou a estabelecer o cânone literário nacional, integrando literatura e sociedade. Com o enfraquecimento do jornalismo cultural e de publicações voltadas ao segmento, a saber, a “Ilustríssima”, da “Folha de S.Paulo”, a “Bravo!” e a “Cult”, a crítica perdeu espaço e alcance. O que antes era um artigo de fôlego, hoje muita vez resume-se a postagens no Instagram, acompanhadas da hashtag #DicaDeLeitura. Esse esvaziamento tem causas diversas: a excessiva mercantilização do jornalismo, a perda de influência do crítico como agente cultural e, sobretudo, a digitalização do consumo de cultura, que deslocou a autoridade da crítica sólida e sem viés ideológico para o “gosto” do público e os algoritmos das redes sociais.

As editoras, diante desse novo cenário, adaptaram-se rapidamente. Com menos espaço na mídia tradicional e diante da crescente importância das redes, passaram a investir em parcerias com “influenciadores literários”, os chamados booktubers, bookstagrammers e, mais recentemente, booktokers. Muitos desses produtores de conteúdo são leitores engajados, mas sem formação crítica — o que, para o marketing, pode ser uma vantagem, pois tornam-se mais “espontâneos” e menos exigentes nas avaliações. É aqui que o crítico literário entra como figura deslocada. Diante da profissionalização do mercado de influência e da necessidade de manter alguma relevância, muitos críticos optaram por aderir ao novo jogo. Tornaram-se, na prática, promotores de livros: recebem exemplares antecipados, produzem resenhas laudatórias, participam de eventos pagos pelas editoras, em um modelo próximo ao de publieditorial, mas muitas vezes sem transparência quanto à natureza promocional do conteúdo. Essa aproximação levanta sérias questões éticas. Um crítico que precisa recorrer às editoras e bajular seus donos e para ter acesso às obras, visibilidade e ganhar a vida pode manter sua independência? É possível exercer uma crítica honesta quando se é, ao mesmo tempo, parceiro de marketing do objeto a ser analisado? Muitas perguntas…

Um dos argumentos frequentemente usados para defender o novo modelo é o da “democratização da crítica”. Segundo essa visão, antes a crítica era um espaço elitista, dominado por acadêmicos e jornalistas; agora, qualquer pessoa pode opinar sobre livros e influenciar outros leitores. De fato, há ganhos inegáveis nessa abertura — sobretudo no que diz respeito à diversidade de vozes, gêneros, raças e perspectivas. Contudo, a democratização, quando mediada por interesses comerciais e algoritmos de visibilidade, pode se tornar uma nova forma de hegemonia. Ao invés de uma crítica mais plural, temos uma crítica mais homogênea, pautada pelo que é vendável. Obras experimentais, autores desconhecidos, gêneros marginais — tudo isso perde espaço em um ambiente onde o sucesso depende de likes, reposts e parcerias. O risco é que, sob o disfarce de democratização, tenhamos apenas a substituição de uma elite por outra — agora baseada em números de seguidores e capacidade de engajamento, não em competência interpretativa ou compromisso com o debate literário.

Apesar do cenário preocupante, há iniciativas que tentam resistir à lógica mercadológica. Algumas revistas acadêmicas e culturais ainda produzem crítica séria, embora com alcance limitado. Projetos como o Suplemento Pernambuco, a revista Serrote, e o canal Ler Até Amanhecer buscam equilibrar profundidade analítica com linguagem acessível. Além disso, críticos independentes — muitos deles fora dos grandes centros — têm utilizado os próprios meios digitais para promover uma crítica mais honesta e comprometida com a literatura. A luta nesses casos é alcançar sustentabilidade financeira sem ceder às pressões do mercado. Modelos de financiamento coletivo, parcerias institucionais e atuação em múltiplas frentes (ensino, pesquisa, curadoria) têm sido algumas estratégias adotadas. É um caminho difícil, mas essencial para preservar a necessária autonomia da crítica literária.

A crítica literária no Brasil vive um momento nada menos que ambíguo. Por um lado, perdeu espaço e relevância na esfera pública tradicional. Por outro, viu-se compelida a adaptar-se às novas lógicas de mercado e visibilidade impostas pela era digital. Nesse processo, muitos críticos tornaram-se, de fato, relações públicas das editoras — agentes promocionais mais preocupados com o sucesso do livro do que com sua qualidade. Essa mudança representa uma perda para a literatura, para o leitor e para a cultura como um todo. Sem crítica independente, o debate empobrece, a arte se acomoda e o público é privado de uma experiência mais rica, mais complexa e, sobretudo, mais transformadora. Urge resgatar a crítica como ela é (ou era): um espaço de mediação, reflexão e provocação. A literatura merece mais do que marketing: ela precisa de leitura crítica, de diálogo honesto e de leitores exigentes.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.