A música mais ouvida do ano foi feita por fãs — e a cantora nem sabe que ela existe

A música mais ouvida do ano foi feita por fãs — e a cantora nem sabe que ela existe

Ela nunca escreveu. Nunca gravou. Nunca ouviu. E, mesmo assim, é dela — ou parece ser. A música mais tocada de 2025, com milhões de plays em plataformas como TikTok, YouTube e SoundCloud, não nasceu num estúdio, nem em um quarto abafado de hotel com violão e cigarro. Ela surgiu, em silêncio, entre algoritmos e devotos: fãs anônimos alimentando inteligências artificiais com a voz de uma estrela que nunca os autorizou a falar por ela.

“God If You’vre Listening” soa como Lana Del Rey — mais do que Lana às vezes soa como ela mesma. Voz arrastada, melancolia líquida, batida lenta com ecos de evangelho e nuvens digitais. Mas Lana nunca compôs essa faixa. Nunca escreveu a letra, nunca cantou uma nota. A música, no entanto, é — e não é — dela. E isso, no mundo de 2025, parece bastar.

Na internet, há quem jure que é oficial. Que vazou. Que é uma demo esquecida. Há quem chore ouvindo. Há quem remixe. E há quem venda a versão em vinil não autorizado por valores que desafiam qualquer lógica. O mais desconcertante é que não há fraude deliberada. Os próprios criadores, muitos adolescentes com laptops e devaneios poéticos, dizem com orgulho: é fanfic sonora. Uma carta de amor com sintetizadores. Um tributo.
Mas… é só isso?

As vozes clonadas — de Lana, Ariana Grande, Rosalía e outras — não são mais tentativas toscas. São réplicas quase perfeitas, polidas por redes neurais que aprenderam a emoção, a respiração, os tropeços melódicos. Ouvintes não treinados — e mesmo os bem treinados — já não conseguem distinguir o que é criação e o que é simulação. E talvez nem queiram. Talvez o prazer esteja justamente nisso: na ilusão construída com sinceridade.

O dilema é tão antigo quanto Orfeu: quem tem o direito de cantar com a voz de alguém? O que se ouve com o coração é propriedade de quem? A indústria reage com processos, os artistas com silêncios ou avisos esporádicos. Alguns, como Grimes, abraçam o fenômeno — ela permite o uso de sua voz com cláusulas claras. Outros, como Lana, simplesmente não dizem nada. E o nada, nesse contexto, ecoa muito.

No fim, talvez estejamos diante de um novo tipo de autoria — uma autoria compartilhada, espectral, inclassificável. Uma música feita por ninguém e por todos. Um hit que não pertence a quem canta, nem a quem ouve, mas ao espaço entre os dois. Um espaço onde a memória é inventada, a emoção é real — e a voz, por mais clonada que seja, ainda toca alguma coisa que não pode ser replicada.