Mães que amam, babás que sangram — o livro que escancara a culpa contemporânea

Mães que amam, babás que sangram — o livro que escancara a culpa contemporânea

Tudo começa com um corpo. Dois, na verdade. Mas não é o fim — é o início. E talvez essa seja a torção mais cruel deste romance: o horror não vem para concluir nada, ele inaugura. Dali em diante, não lemos para saber o que aconteceu. Lemos para entender por que ninguém viu acontecer.

O que Leïla Slimani faz aqui não é exatamente escrever um thriller — embora a tensão escorra pelas páginas com a lentidão cortante de uma faca sem pressa. Ela não quer que corramos. Ela quer que fiquemos. Que reparemos. Que nos demoremos no incômodo. É incômodo mesmo, essa palavra que coça a nuca e não se acomoda. Porque é isso: nada nesse livro se acomoda.

Canção de ninar
Canção de Ninar, de Leila Slimani (Tusquets, 192 páginas)

Louise, a babá. Myriam, a mãe. Paul, o pai. As crianças. E entre todos eles, uma dança social ensaiada, domesticada, aparentemente funcional. Mas uma dança pode esconder muita coisa — e, às vezes, basta uma nota fora do compasso para tudo desmoronar. Louise, por exemplo, sorri. Cozinha com zelo. Canta. Limpa. Abraça. E vai, pouco a pouco, sumindo dentro da casa dos outros. Tornando-se um móvel? Um ruído de fundo? Uma presença que só incomoda quando está ausente.

E é aí que Slimani nos pega. Porque a violência que se constrói nessa história não é só física. Ela é feita de apagamentos lentos, de microinvisibilidades cotidianas. Do jeito como se fala com quem serve. Ou do jeito como se deixa de falar. Do quanto se espera que alguém cuide da sua vida inteira — sem nunca se interessar pela dela.

Louise é uma personagem que nos atravessa. Porque não sabemos se a odiamos, se a tememos ou se, no fundo, algo em nós reconhece o vazio que ela carrega. Não porque sejamos capazes daquilo que ela faz — Deus nos livre —, mas porque conhecemos o cansaço. A exaustão de tentar ser necessária em um mundo que nos substitui com um clique. O desejo de ser vista, só isso. Vista. É tão pouco, mas às vezes tão distante.

E Myriam… ah, Myriam. Ela também não é uma vilã. Está só tentando. Quer voltar a trabalhar, quer ter uma vida para além dos filhos, quer se lembrar de quem era antes. Ela se debate entre culpa e desejo, entre amor e autonomia. E essa contradição é dolorosa, porque sabemos como é. Quantas mulheres, mães ou não, vivem essa corda bamba todos os dias? O livro não julga. Só expõe. E é isso que fere mais: ninguém está absolutamente certo ou absolutamente errado. Todos estão, de algum modo, tentando não afundar.

O texto de Slimani tem uma secura que engana. À primeira vista, é sóbrio. Contido. Mas há algo subterrâneo ali. Um calor abafado, uma angústia que cresce. Frases curtas, às vezes. Outras, mais longas, que parecem hesitar antes de terminar. E entre elas, silêncio. Silêncio demais, talvez. Mas não silêncio poético. Silêncio de armário fechado. De ressentimento. De solidão.

É difícil classificar esse livro. Ele tem o ritmo de um thriller, a delicadeza de um drama psicológico, o peso de uma crítica social. Mas, acima de tudo, tem uma humanidade perturbadora. Porque nos obriga a olhar para o que não gostamos de ver: o que sustentamos com nosso conforto. O que permitimos ao não perguntar. O que perpetuamos ao chamar de normal.

“Canção de Ninar” é um título cruelmente belo. Porque evoca colo, cuidado, sono. Mas aqui, a canção embala a ruína. A babá canta, sim. Mas o que ela embala não é o descanso — é o abismo.

E, no fim, o que mais fica não é o sangue, nem o crime, nem o escândalo. O que fica é a pergunta muda: onde estava o afeto quando ainda havia tempo? Não para evitar o fim — mas para, quem sabe, dar sentido ao meio.

Talvez esse livro doa tanto porque ele poderia ser evitado. E não foi. E talvez, em alguma casa, em algum apartamento, agora mesmo, alguém esteja sorrindo com um prato quente na mão — e uma tristeza infinita no peito. A literatura, às vezes, é o único lugar onde conseguimos ver isso de frente.

Sim. Às vezes, é só isso. Mas isso — eu acho — já é suficiente.

Tainá Corrêa

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