A comédia romântica tão boa que você vai querer assistir duas vezes — e talvez até sozinho Darren Michaels / Columbia Pictures

A comédia romântica tão boa que você vai querer assistir duas vezes — e talvez até sozinho

Há ideias que se impõem não pela plausibilidade, mas pela insistência com que desestabilizam o que chamamos de normal. “Como Se Fosse a Primeira Vez” nasce justamente dessa provocação: e se amar alguém significasse, literalmente, começar do zero todos os dias? À primeira vista, a trama parece brincar com um argumento simplório — uma mulher com amnésia anterógrada que apaga toda nova lembrança ao fim do dia — para sustentar uma comédia romântica ambientada entre paisagens de cartão-postal. No entanto, por trás do verniz tropical e da comicidade exagerada dos coadjuvantes, há um convite inquietante: repensar o amor não como acaso ou destino, mas como insistência. A cada reencontro entre Henry e Lucy, somos lembrados de que o afeto genuíno talvez não resida no reconhecimento, mas na escolha deliberada de permanecer, mesmo quando o outro esquece quem somos.

Adam Sandler, cuja persona pública sempre oscilou entre o desleixo cômico e a agressividade performática, surpreende ao modular sua energia em favor de um protagonista que abdica da explosão para cultivar a permanência. Há nele uma serenidade que torna Henry Roth um personagem inusitado em sua filmografia — menos palhaço, mais cúmplice. Drew Barrymore, por sua vez, empresta a Lucy uma fragilidade que jamais se converte em passividade. Seu olhar desconcertado não é vazio; é um campo minado de sutilezas que exige do outro não apenas empatia, mas reinvenção constante. A química entre os dois funciona porque não se apoia em gestos grandiosos, mas na habilidade de reencenar pequenos rituais com genuína delicadeza — como se a intimidade fosse um idioma que precisa ser reaprendido a cada manhã.

A estrutura do filme, que poderia facilmente cair na repetição narrativa, transforma a rotina em ferramenta de experimentação. Cada tentativa frustrada de Henry se torna não apenas um obstáculo, mas uma oportunidade de refinar sua escuta, ajustar sua presença, reconsiderar suas estratégias — como um músico tentando encontrar a afinação perfeita ao executar a mesma partitura. É nesse processo que os elementos mais excêntricos — como o amigo havaiano inconsequente de Rob Schneider ou o irmão musculoso e infantilizado de Sean Astin — operam não como alívios cômicos gratuitos, mas como espelhos distorcidos da própria condição de Lucy. Ao criarem suas próprias versões da realidade para protegê-la da dor de recordar o que não pode fixar, eles incorporam um dilema ético latente: até que ponto estamos dispostos a manipular o presente para evitar o sofrimento do outro?

Curiosamente, o cenário havaiano, com seu sol perene e mar imutável, intensifica a sensação de que o tempo ali não avança — como se o espaço conspirasse com a condição de Lucy para prender todos num eterno retorno. Mas essa aparente imobilidade não engessa a narrativa; ao contrário, torna mais evidente o esforço de Henry em romper a lógica do esquecimento com uma memória construída pela repetição afetiva. A trilha sonora, composta por versões tropicais de clássicos dos anos 80, reforça essa tensão entre nostalgia e recomeço, passado e reinvenção. Há algo de profundamente subversivo nesse gesto: transformar a perda da memória em terreno fértil para o amor, não como acúmulo de lembranças, mas como prova da disposição de insistir.

“Como Se Fosse a Primeira Vez” não evita a melancolia embutida em sua premissa, tampouco tenta resolvê-la com fórmulas reconfortantes. O filme reconhece que há algo de trágico em amar alguém que não nos reconhece, mas decide explorar justamente o que resta quando toda recompensa simbólica desaparece. O que se impõe não é a vitória de Henry sobre o esquecimento, mas a sua entrega radical à incerteza. Amar, aqui, é não desistir de criar raízes mesmo em solo instável. E talvez seja essa a maior conquista do filme: deslocar o riso fácil e o romance edulcorado para abrir espaço a uma reflexão rara em comédias do gênero — a de que a verdadeira conexão não depende da memória, mas da disposição constante de se fazer presente, mesmo quando tudo ao redor insiste em nos apagar.

Filme: Como Se Fosse a Primeira Vez
Diretor: Peter Segal
Ano: 2004
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★