10 livros que não mudam o mundo — mudam você, que é mais difícil

10 livros que não mudam o mundo — mudam você, que é mais difícil

Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos (e complexos) da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. Entre outros pontos, é fulcral no pensamento de Heidegger a valorização das muitas descobertas que o homem faz no decorrer de uma vida que sempre lhe parece demasiado curta (e o é mesmo), mas decerto ganha outras cores, um viço inesperado, uma força qualquer poderosa o bastante para fazê-la desviar do precipício ao passo que nos instiga a recorrentemente  testar limites novos, como se mais do que oxigênio, água e pão, tivéssemos de nos suprir primeiro de uma boa matula de acaso. A irrequietude do homem frente ao passar do tempo — incansável, inclemente, cruel — e sua cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória, dá ao gênero humano das poucas certezas que se consegue garimpar desse campo lodoso e edênico que é a vida: jamais se deve deixar passar uma boa oportunidade. 

Poucas ideias remontam à imagem de aproveitamento do mundo, deste e mesmo de algum outro, em que passam a habitar — agora encantados, como diria Guimarães Rosa (1908-1967) — aquelas mulheres e homens sem par que ocuparam lugar de destaque na Terra, que uma narrativa de linguagem escorreita, plena de líricas alegorias, sobre a vida e, tanto mais, sobre o pós-vida de dois orgulhos que a brisa do Brasil não mais balança, e muito menos beija. Último volume da trilogia sobre um profeta nada convencional, em “A Morte de Jesus” (2019), o sul-africano J.M. Coetzee denuncia suas frustrações e confessa suas esperanças no que pode vir a ser uma outra civilização, partilhando da descrença do leitor. Coetzee, Nobel de Literatura em 2003, abre um enorme panorama, multicolorido e cinzento, sobre o destino da humanidade, perdida desde sempre nas ilusões de redenção que não cansa de alimentar. As grandes transformações sociais começam dentro do indivíduo, e ninguém cavou mais fundo  a alma do homem em busca de sua real essência e de uma verdade qualquer que Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881).

No fundamental “Memórias do Subsolo” (1864), Dostoiévski brinca com dois conceitos, a avidez humana por sabedoria e o quão deslocado o homem está num mundo que não conhece, nem nunca conhecerá. Não por acaso, Dostoiévski, esse humanista incorrigível, para quem a esperança é uma vã quimera da qual ninguém no gozo pleno de suas faculdades mentais pode abrir mão, entra duas vezes na lista que compusemos, com os dez livros que têm de ser lidos por aqueles que não querem revolucionar nada menos que a si mesmos — além de “Memórias do Subsolo”, é mister citar “O Sonho de um Homem Ridículo” (1877), a respeito de um homem descoroçoado, desesperançoso, perdido, tão insignificante que o autor sequer deu-se ao trabalho de dispensar-lhe um nome. “O Sonho de um Homem Ridículo” é, a propósito, o primeiro a figurar na nossa relação, por ordem de importância, graças a sua capacidade de vencer a bruma corrosiva do tempo e manter-se espantosamente atual, como todo verdadeiro clássico.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.