Todo mundo já sonhou com o dia em que seria capaz de voltar a um determinado tempo de sua vida, um tempo feliz, em que nada nem ninguém teria o poder de atropelar momentos inesquecíveis, que se eternizariam até que tudo chegasse a seu fim natural, sem pressa, feito um imenso balé conduzido pela Providência. Qualquer um no pleno domínio de suas faculdades mentais também reconhece que, se a felicidade fosse a regra, aprender-se-ia muito menos, viver seria bem mais fácil — fácil demais — e tedioso, muito tedioso, e a premissa inicial coroada por “De Volta ao Início” acabaria sem razão de ser.
A filipina Mae Czarina Cruz narra uma história de amor com bastante espaço para desencontros, feita de um bom homem, mas um tanto obstinado pela carreira, uma mulher dedicada, mas suscetível a intervenções de quem só parece amigo, e um acaso de desdita a separá-los. O roteiro, de Enrico Santos e Joel Mercado, vale-se de uma imagem simples na intenção de explicar as desventuras de um casamento no qual o amor tem vez, mas perde-se num turbilhão de vários outros sentimentos.
Embora Cruz disponha de uma solução deus ex machina para liquidar a fatura na conclusão, seu filme não deixa de ser uma enumeração sensata dos perigos que rondam um casal. E quanto mais se amar, mais se vai sofrer. Sozinho do berço ao túmulo, sujeito à vasta gama de intempéries que o ameaçam com uma violência que nem sempre é capaz de suportar, o gênero humano escapa por um triz a algumas trapaças do destino, permitindo-se gostosamente enredar nas teias do imponderável, depois de haver vislumbrado todas as chances de evitar o abismo e ter preferido lançar-se com tudo em suas profundezas.
A vida é mesmo um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em algum momento, até com uma frequência intolerável, insana, misturando tudo ao caos que faz com que o existir pareça imerso numa substância untuosa que interdita qualquer movimento, dando a impressão de que a realidade cedeu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, extenuante, que suga as energias de quem dorme e tenta, em vão, manipular aquelas imagens a seu gosto.
Ao se dar conta, enfim, de que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais pudesse —, de que sua jornada até ali, em maior ou menor medida, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora, de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade.
John e Mary Nuñez têm a vida que julgam perfeita. John, o personagem de Dingdong Dantes, segue firme seu caminho até o topo, enquanto a esposa administra a rotina doméstica e cuida de Austin, o filho dos dois vivido pelo carismático Jordan Lim. Dantes e Lim desempenham papéis centrais numa trama sobre a delicadeza e a complexidade das relações, mas é Marian Rivera quem pega o enredo pelo chifre e o leva até o fim. No primeiro ato, o trio compõe um núcleo harmonioso, malgrado a diretora já dê sinais de que as coisas não tardam a degringolar.
Numa confraternização da empresa em que trabalha, depois de um bizarro show em que se apresenta espremendo-se num vestido de lantejoulas — espírito esportivo pode ser a chave para o sucesso em ocasiões assim —, John esperava ser promovido, mas Hermie, o patrão (e padrinho) prefere Vivian, a chefe do departamento financeiro. Ainda que apareça pouco, Ariel Ureta materializa a guinada essencial do filme, e o mesmo pode-se dizer da personagem de Sue Ramirez, num recorte mais estrito.
No dia seguinte, uma discussão no carro leva à tragédia que pontua o longa do segundo ato em diante, e na cena em que John se despede de Mary já se sabe o que vai acontecer. De todo modo, Cruz dá ao público evidências materiais para especular sobre o fim do anti-herói de Dantes, como o onipresente cigarro. Apesar de toda a obviedade — ou por isso mesmo —, “De Volta ao Início” diverte.
Filme: De Volta ao Início
Direção: Mae Czarina Cruz
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10