Subestimado, suspense intrigante na Netflix vai despertar algumas de suas paranoias mais profundas Martijn van Gelder / Millstreet Films

Subestimado, suspense intrigante na Netflix vai despertar algumas de suas paranoias mais profundas

Já no título, “Fiéis” ilude o espectador, induzindo-o a pensar que vai assistir a casais empenhados em fazer prosperar seu relacionamento mediante a reflexão quanto à postura a ser adotada naquelas circunstâncias em que a razão torna-se uma inimiga figadal cuja suave presença logo degenera num aziúme invencível, que se entranha nas paredes e eiva tudo de enfaro e violência, combatidos com o remédio mais prosaico e mais enganoso, capaz de arruinar de uma vez por todas qualquer ilusão de felicidade. Para muito além de negociações sobre de que lado da cama se vai dormir, casamentos implicam deliberar acerca de quase tudo, inclusive — ou principalmente — quando se trata de saber aonde podem levar as loucuras à primeira vista ingênuas pelas quais um ou outro se encanta.

Chega a hora em que o mentiroso é castigado com a indiferença, a indiferença degringola em neurose, e então o caos se instala. E já nas primeiras sequências de seu filme, o holandês André van Duren esmera-se em deixar claro que a história que conta é, sim, uma espiral de situações tão desconfortáveis quanto avessas a quaisquer previsões, como a imensidão perigosa do mar. Van Duren vai dispondo o roteiro, escrito com Elisabeth Lodeizen e Paul Jan Nelissen, de imagens aparentemente faltas de sentido, mas que juntas contribuem para que se erija a base do argumento central. Toda a poesia da introdução vai abrindo espaço a um cinismo que se desvela sem melindres aos olhos do público, como na audiência de divórcio conduzida por Bodil Backer, a respeitável juíza de Bracha van Doesburgh, cuja intimidade oferece um contraponto a retidão que lhe exige o ofício. O diretor é hábil em esconder a frustração essencial de sua anti-heroína, e enquanto tudo permanece no terreno pantanoso das elucubrações, Bodil planeja uma “viagem de mulheres”, durante a qual irá apenas, pelo que diz, comparecer a uma palestra e assistir a uma peça de teatro — e cada um desses programas guarda uma surpresa. Sua consorte na aventura será Isabel Luijten, a pacata dona de casa vivida por Elise Schaap, que a personagem de Van Doesburgh quer a todo custo resgatar do horror da vida doméstica.

Nas poucas vezes em que aparecem, os homens são relegados ao infame papel de meros títeres das esposas, e é precisamente nesse limbo de frouxidão moral e degenerescência do sentimento que Van Duren opera, fazendo uma aposta nos lugares-comuns que dobra a seu talante. Ainda no segundo ato, explica-se o procedimento que faculta às duas amigas transitar pelas praias e boates de um lugar desconhecido com a liberdade que julgam invencível. Conforme o desfecho se avizinha, quem assiste sabe, enfim, que Bodil e Isabel, nessa ordem, não são tão espertas quanto pensavam; antes, a narrativa gira em torno da estratégia pensada por Isabel para ver-se livre de Luuk, o marido interpretado por Gijs Naber, que não tem ideia do quanto a mulher o repele. A saída deus ex machina de que o diretor lança mão para fechar esse arco reforça preconceitos sobre a astenia do casamento heterossexual e monogâmico, embora o resultado, sob o ponto de vista dramatúrgico, satisfaça.


Filme: Fiéis
Direção: André van Duren
Ano: 2022
Gênero: Thriller/Mistério
Nota: 8/10