Silêncios… e outros foras

Silêncios… e outros foras

Éramos só sorrisos. Nossos olhos brilhavam. Nossos corpos se esbarravam propositalmente. O mundo ao redor tinha deixado de existir. E eu também não via sentido algum em continuar existindo se não fosse ao lado dela, embalado e fascinado pelo seu canto… pelo seu perfume. Sim, havíamos acabado de nos conhecer, mas eu já estava completamente entregue. Ansioso para viver o nosso amor até o finzinho do século… A festa chegara ao seu final, e tivemos que nos despedir. Mas, trocamos promessas e o contatos.

Cheguei em casa excitadíssimo. Mesmo sem ela, novas conversas e sonhos eclodiam na minha mente. Transtornado, meu coração não parava de trepidar. E como eu não cabia mais em mim, resolvi escrever logo uma mensagem. Claro, a mensagem foi completamente desmesurada. Carinhosa e apaixonada demais (obviamente, não tinha me dado conta disso). Ofegante de ansiedade e angústia, aguardava um retorno breve. Havia me lançado ao mar, sem cordas e nem amarras, na minha Odisseia amorosa.

E a resposta não chegava. O que teria acontecido? Será que ela não tinha recebido minha mensagem? Será que minha mensagem podia ser lida de alguma forma que ela não tinha gostado? Reli diversas vezes o que escrevi. Encontrei algumas vírgulas fora do lugar… mas será que foi isso que ela não gostou? Será que não deveria ter escrito ‘Eiii!’ e, sim, apenas um ‘Ei’, mais acanhado? Terminar a mensagem com um ‘mil beijinhos’ foi demais? Ou foi pouco? Deveria ter declarado todo meu amor eterno, ou ter sido um pouco mais frio com um ‘atenciosamente’. Será que ela me respondeu e eu não recebi a desgraçada resposta? Será que algum amigo perverso, ou um bastardo de um ex-namorado, conseguiu hackear minhas juras de amor e apaga-las para sempre? Será que a mensagem se perdeu nesses malditos ‘buracos de minhoca’ que, de acordo com a Física Quântica, une duas partes distantes desse abominável Universo que insiste em não me entregar uma simples mensagem? Não. Não era possível que esse pesadelo estivesse acontecendo. Tenho certeza que ela também sentiu o mesmo que senti. Ela sorriu. Sorriu muito. Ela me tocou. Esbarrou seu desejado corpo por diversas vezes ao meu. Ela também falou, e não foi pouco, dos ‘nossos’ planos. De outros possíveis encontros. De outros jantares e restaurantes. De outras viagens e conquistas. Não. Definitivamente aconteceu alguma coisa séria com ela. Teria ela perdido o celular? O computador? Os dedos? A razão? Teria ela sofrido algum acidente e perdido a capacidade de ler? De escrever? De viver? De viver ao meu lado? Que terrível! E eu vivi a paranoia desse amaldiçoado silêncio por minutos, horas, dias, semanas, meses… eternamente.

O silêncio é também uma resposta. Uma resposta assombrosa, dolorosa, aterrorizadora. Uma resposta que aguça seus medos e monstros. Uma resposta impossível de não ser ouvida. Kafka sabia muito bem disso. O brilhante e atormentado escritor subverte e engrandece o lindo episódio do ‘canto das sereias’ na “Odisseia”. Segundo Homero, Ulisses é advertido que o poderoso e sedutor canto das sereias levaria todos à morte. Ele então ordena que o amarrem ao mastro, que não o soltem sob hipótese alguma, e também obriga toda tripulação que passe cera nos ouvidos, impossibilitando que o irresistível canto fosse ouvido. O herói esbraveja, enlouquece, vocifera, mas, ao fim, por estar completamente atado, vence as abomináveis sereias. Mas Kafka é muito mais arguto que Homero e Ulisses. Ele sugere que nada disso de fato aconteceu. Que o nosso grande herói também colocara cera em seus ouvidos. E que por mais glorioso e destemido que fosse, não resistiria jamais aos encantos dessas sereias. Elas, belas e engenhosas, sabendo da prestigiosa visita, resolveram naquele dia, justamente, não cantar. Não cantaram porque sabiam que o canto, por mais maravilhoso que fosse, poderia ser rechaçado com artimanhas das quais Ulisses era o grande mestre. Elas sabiam que o silêncio, o estrondoso silêncio, jamais, em época alguma, deixaria de ser ouvido. Ulisses, na verdade, foi vencido pela sedução do silêncio.

Ando distribuindo palavras e colhendo silêncios. Silêncios profissionais, pessoais, galácticos. O universo definitivamente não conspira para quem responde rapidamente todas as mensagens. Para quem está disponível na maioria do tempo. Para quem não sabe esperar. Eu sei que o desejo é diretamente proporcional à falta. O mistério, proporcional ao interesse. A incerteza, proporcional à recompensa. E que o silêncio é, sem dúvida, o mestre maior do desejo, do mistério, da incerteza. Em tempos de respostas instantâneas, não cantar é se fazer ouvir. É atormentar, iludir, encantar. Seria necessário romantizar as palavras. Saboreá-las. Engrandecê-las. Torná-las interessantes, recompensadoras, imprescindíveis. Guardá-las, com carinho, deixando-as germinar em um silêncio respeitoso para enfim reponde-las… e ser, de fato e finalmente ouvido e desejado.