Não pisque, não se mexa: o filme da Netflix que te hipnotizará no sofá Divulgação / Capelight Pictures

Não pisque, não se mexa: o filme da Netflix que te hipnotizará no sofá

As incongruências entre homens e mulheres — especialmente se casados — dão o tom no cinema desde sempre. Flagrantemente inspirado por “Rebecca” (1940), do mestre do suspense Alfred Hitchcock (1899-1980) — que, por sua vez se valeu de “Barba Azul”, conto do escritor francês Charles Perrault (1628-1703) publicado em 1697, também incorporado na obra de Georges Méliès, o pioneiro dos pioneiros do cinema —, o diretor venezuelano Sebastian Gutierrez apresenta em “O Quarto Secreto” (2019), sua leitura particular da história de um matrimônio em muito semelhante a qualquer outro, mas com seus dramas próprios, que pontuados com a dose exata de mistério e circunstâncias que evocam pânico, compõem um enredo de sofisticação invulgar nas mãos seguras do roteirista-diretor.

Gutierrez opta por uma narrativa quase protocolar ao fazer a primeira exposição de seus personagens. A história abre com Henry, de Ciarán Hinds, um cientista sexagenário que carrega uma mulher desacordada nos braços, aparentemente depois do uso de alguma droga. Logo se percebe que a moça, Elizabeth Harvest, vivida por Abbey Lee Kershaw, está vestida de noiva, e é levada no colo pelo marido para que se cumpra o costume. Ao se deparar com todo o fausto da nova casa, Elizabeth desperta do transe e começa a tentar se familiarizar à nova vida de que está prestes a gozar, até que a morte a separe de Henry, em tudo correndo bem. Partilham a cena com Kershaw o enteado de sua personagem, Oliver, de Matthew Beard, milimetricamente posicionado atrás dela, como uma serpente que mesmo cega não erra o bote, e Claire Kellenberg, a governanta, interpretada com um misto de graça e frieza por Carla Gugino, cujo talento permite que o tipo cresça a fim de amarrar as muitas arestas do introito.

Bilionário devido a suas descobertas em pesquisas sobre o RNA humano, que o habilitaram a vencer o prêmio Nobel de Medicina — outra das chaves do roteiro —, Henry oferece toda a propriedade à nova esposa, exceto um quarto no porão, em que não está autorizada a entrar sob hipótese alguma. Por óbvio, Elizabeth não lhe dá ouvidos e se depara com um cenário aterrador, a única grande (e providencial) novidade no trabalho de Gutierrez, que em tudo o mais é assumidamente similar ao homólogo hitchcockiano, uma homenagem à altura do gênio do cineasta britânico. Seguindo um ritmo pouco linear, em que vaivéns dotados de níveis de tensão ora suportáveis, ora extravagantes tornam-se especialmente saborosos, o apatetado tenente-detetive Logan, papel de Dylan Baker, o amigo policial do protagonista — como em quase todo entrecho do gênero —, surge na história fazendo as perguntas de praxe a fim de desvendar algum evidente segredo envolvendo os moradores da mansão sem nunca concluir coisa alguma, malgrado saiba que por meio de uma névoa obscura eles tentam manter as aparências (e pelo que depreende das reações de Elizabeth, claro).

São as escolhas estilísticas de Gutierrez que não permitem que o roteiro de “O Quarto Secreto” seja só mais do mesmo. Valendo-se de recursos como a bipartição da tela e o emprego de filtros azul e vermelho em todo o quadro a dada altura da história, além do close dos olhos azuis de Elizabeth, um fetiche do diretor — do mesmo modo que Hitchcock o tinha por louras e arranha-céus —, o diretor evidencia a crispatura na atmosfera do palacete, que apesar de construído à luz da arquitetura moderna, tem a mesma aura do castelo medieval de Maxim de Winter, incorporado por Laurence Olivier (1907-1989) na produção de oito décadas atrás, com calabouços e passagens desconhecidas. Cale Finot, o diretor de fotografia, abusa de zooms sutis fazendo com que a câmera resvale por entre os objetos de cena, dando uma sensação de vertigem, sugerindo a natureza sombria, fantasmagórica do ambiente.

A submissão de Elizabeth a um marido tirânico, que dispõe dela como se a esposa fosse um mero autômato construído para realizar suas vontades, só pode ser interrompida caso a personagem tome a atitude corajosa — e radical — por que acaba optando. Da mesma forma que em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), dirigido por Alex Garland, Elizabeth abandona o Éden decaído em que fora morar por sua livre vontade saindo por baixo, ao contrário de Ava, a antagonista da história de Garland, mas ainda a tempo de refazer sua vida. E sempre é tempo para se refazê-la.


Filme: O Quarto Secreto
Direção: Sebastian Gutierrez
Ano: 2019
Gêneros: Ficção Científica/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.