Desde a primeira cena, uma bruma de desconforto paira sob os “Os Suspeitos”, um dos melhores suspenses da década passada. Três anos antes do incomparável “A Chegada” (2016), seguramente um dos filmes mais emblemáticos do novíssimo cinema do século 21, instigante, impactante, revolucionário, simbólico em tudo quanto concerna ao ímpeto do homem por progresso, por domínio da tecnologia, pela subjugação de formas de vida e, quem sabe, civilizações que julga inferiores, Denis Villeneuve, um dos diretores mais refinados de todos os tempos, exercita seu talento para narrativas que projetam-se sobre si mesmas, num círculo um tanto claustrofóbico, apresentando possibilidades distintas para um mesmo arco. Aqui, o diretor vale-se de sutilezas de linguagem, diretamente proporcionais ao desempenho dos atores, um dos maiores trunfos do longa — mesmo com um grande equívoco —, para fazer do roteiro de Aaron Guzikowski uma experiência para muito além do inaudito.
Um homem reza um Pai-nosso numa floresta tomada de neve e, sem a menor evidência de um latente prurido moral, alveja um cervo. Keller Dover volta para casa levando o animal na carroceria da velha picape roxa que usa no trabalho de carpinteiro autônomo, e algumas cenas depois, quando se sabe que ele quer dar seu troféu a um casal amigo como presente de Dia de Ação de Graças, tudo vai se ajustando. Hugh Jackman transita bem por entre a masculinidade assumidamente caricata e a fraqueza que Dover tenta esconder a todo custo, e à medida que a história se levanta, resta claro que ele é uma vítima de seus preconceitos. No jantar com os Birch, depois de umas taças de vinho, Dover relaxa e consegue se divertir, mesmo sendo forçado a aguentar os solos desafinados do trompete de Franklin, o anfitrião vivido por Terrence Howard, nos acordes de “The Star-Spangled Banner”, de Bruce Springsteen. Ele e a esposa, Grace, papel de Maria Bello, levam os filhos Ralph, de Dylan Minnette, e Anna, de Erin Gerasimovich, para confraternizar com Eliza e Joy, as personagens de Zoë Soul e Kyla Drew Simmons, e enquanto a ação central toma parte na sala de jantar, o diretor oferece ao público elementos para supor que as crianças estão bem, aproveitando a festa em seu mundinho particular. Quando Anna se dirige a Dover e Grace querendo ir buscar um tal apito vermelho junto com Joy, eles não veem problema. E suas vidas mudam para sempre.
Villeneuve elabora o segundo ato, em que o terror psicológico de “Os Suspeitos” desabrocha de uma vez, conferindo toda a liberdade para que Roger Deakins abuse da fotografia sempre muito apagada que torna-se ela mesma outra das personagens do filme. Mesmo no diner chinês iluminado por lâmpadas fluorescentes e repleto de lanternas vermelhas em que Loki toma uma refeição a cena parece quase lúgubre, e não poderia ser de outra forma: o detetive vivido por Jake Gyllenhaal, encarregado de investigar o desaparecimento das garotas, é sobrevivente de uma tragédia familiar. O passado misterioso e particularmente rico de Loki no orfanato em que crescera é o que o autoriza a inferir que o sequestrador até pode estar muito mais perto do que todos pensam — especialmente Dover —, mas não é o homem certo. Alex Jones, o vizinho portador de deficiência intelectual encarnado com uma beleza diabólica por Paul Dano, é eleito pelo pai de Anna como o predador a ser abatido, mas Loki, por óbvio, não morde a isca. Seu faro para detectar monstros de todas as formas nos buracos menos prováveis o faz encarniçar-se de Holly, a mãe adotiva de Alex. E então as pedras rolam.
Melissa Leo monopoliza todas as atenções dando vida a uma psicopata bestial que libera sua natureza mais perversa depois que o marido a abandona por uma mulher bem mais jovem. Há um enigma perturbador a envolver a figura da dona da casa 1.634, ancorado em ressentimento, exclusão social e fanatismo religioso, que Villeneuve somente arranha, em favor da violência explícita que se dá nesse novo cenário. “Os Suspeitos” encontra a conclusão ao cabo de sequências dispensáveis em que Bob Taylor, uma espécie de Alex Jones mais esperto, também sofre com falsas acusações, embora a composição de David Dastmalchian, muito breve, amenize o prejuízo. O lamentável mesmo é o desperdício criminoso de Viola Davis, que aparece bissextamente no transcurso de mais de duas horas e meia de projeção — e sem nunca dizer a que veio —, mesmo já sendo dona de uma carreira sólida e brilhante.
Filme: Os Suspeitos
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2013
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 9/10