Seus olhos vão pegar fogo: o filme mais eletrizante e insano que você verá Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Seus olhos vão pegar fogo: o filme mais eletrizante e insano que você verá Netflix

Narrativas de ação têm por fundamento dispor de uma natureza pronunciadamente ambígua. Se por um lado essas histórias, repletas de confrontos diretos, perseguições que não raro extenuam o espectador, tiroteios que, por muito pouco, não massacram o pobre candidato a salvador da humanidade, também encerram lições sobre como fomos abrindo mão do prazer diário que é o milagre da vida; nos deixamos ensurdecer aos apelos silentes que nos dirigem os rios, os mares, as matas, o ar; acatamos a premissa enganosa de que só conseguiremos o progresso por meio de uma degradação ambiental metódica, que redundará, por óbvio, no nosso próprio fim. Diante de enredos como esses, nos apercebemos de que o mundo às vezes lembra uma avenida, larga e imensa perdida no sem-fim da cidade, ao longo da qual nos embrenhamos a horas mortas de uma madrugada deserta. À medida que avançamos e nos permitimos sumir por seus intestinos de concreto e breu, julgando, ingênuos, estarmos perto da saída, menos segurança temos quanto ao ponto em que na verdade nos encontramos. Só nos resta continuar essa perambulação às cegas e torcer para que alguma alma bondosa nos venha resgatar, como se cada segundo de que dispuséssemos se transformasse num tesouro de valor inestimável e cada volta do relógio fosse a derradeira, a crucial, para que alcançássemos nossa sonhada redenção.

Tom Cruise encara à perfeição esses tipos messiânicos, que salvam a humanidade de si mesma movido por princípios — e motivações outras que nunca restam suficientemente claras. Seu Ethan Hunt, o anti-herói mais longevo do cinema, já atravessa mais de um quarto de século escalando pedreiras, se jogando de pontes, aprendendo a pilotar helicópteros na prática e, o mais importante, segurando produções cujo orçamento bate a casa da centena de milhões de dólares, em histórias que se prolongam para mais que as duas horas protocolares do mercado cinematográfico, e não raro seguem reverberando na cabeça do espectador por semanas a fio. É o que acontece em “Missão: Impossível — Nação Secreta” (2015), em que Cruise e o diretor Christopher McQuarrie iniciam a exitosa parceria vista também em “Missão: Impossível — Efeito Fallout” (2018), e que promete se estender por mais duas temporadas, em 2023 e 2024.

Aqui, McQuarrie começa a esquadrinhar o que se vai assistir em “Efeito Fallout”. Ethan Hunt, que a essa altura dos acontecimentos já se tornou seu alter ego fílmico, toma pé de um tal Sindicato, associação de ex-agentes da CIA, a autarquia americana responsável pelas operações de espionagem e contra-espionagem internacional, que continuam na ativa, prestando serviços pontuais sem que a opinião pública tenha a chance de se meter. Como sempre acontece em corporações de gente muito poderosa que quase nunca submete-se ao escrutínio da lei, despontam no Sindicato os Apóstolos, uma ramificação bioterrorista da facção que, sem propósitos muito bem definidos que não o de espalhar o caos por meio de manifestos apocalípticos, se infiltra na FMI, a Força de Missões Impossíveis, na figura de um tal John Lark, que planeja surrupiar a carga de plutônio necessária para desenvolver não uma, mas três bombas nucleares. Em “Nação Secreta”, o diretor apenas insinua essas novas incumbências de Hunt, dando preferência, acertadamente a elaboração de Solomon Lane, o psicopata interpretado por Sean Harris, cuja ira terá de conter. Depois de algumas reviravoltas, o acerto de contas entre os dois acontece finalmente, mas Lane, como se atesta em “Efeito Fallout”, segue tirando o sono do mocinho.

Outro dos gols de placa de McQuarrie é não colocar todos os ovos numa única cesta (que sempre aguentou o tranco galhardamente, diga-se) e apostar nos coadjuvantes. É difícil ser taxativo quanto a quem se destaca mais no qualificadíssimo elenco de apoio, se Alan Hunley, o chefe da FMI de Alec Baldwin, que deixa entrever uma nesga dos conflitos éticos que o filme de 2018 aprofunda; se Benji, o atrapalhado burocrata da CIA vivido por Simon Pegg, carisma puro; ou Luther Stickell, o gigante gentil de Ving Rhames. Se fosse para arriscar um, ou melhor, uma, ficaria mesmo com a sueca Rebecca Ferguson na pele de Ilsa, um evidente tributo à personagem de Ingrid Bergman (1915-1982) em “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz (1886-1962), cuja semelhança chega a assustar. Como na antimocinha de Bergman, a desfaçatez de Ilsa é o sal de “Missão: Impossível — Nação Secreta”, e esse antirromance, às raias da destruição para uma e para o outro, encarna as melhores passagens, deste filme e do que o sucede.


Filme: Missão: Impossível — Nação Secreta
Direção: Christopher McQuarrie
Ano: 2015
Gêneros: Thriller/Aventura/Ação
Nota: 10/10