Filme com Keanu Reeves e Lily Collins, na Netflix, é lição inestimável de coragem e resiliência Gilles Mingasson / Netflix

Filme com Keanu Reeves e Lily Collins, na Netflix, é lição inestimável de coragem e resiliência

Reuniões são quase sempre enfadonhas, restringentes, frustrantes, constrangedoras. Como não há nada de tão ruim que não possa piorar o seu tanto, o homem teve o condão de fundar associações de moradores, sindicatos, clubes, partidos políticos, torcidas organizadas e così via a fim de, reunido com outros iguais de sua espécie, deliberar sobre os problemas que ele mesmo inventa, as crises que fabrica, a falsa luta de classes que gera desigualdades outras e até mais severas — e líderes espertos, que anteveem a chance de criar dificuldades para vender facilidades e ir longe, bem longe — ou só promover quebra-quebra naqueles momentos em que o Sobrenatural de Almeida, a entidade que costuma rondar os campos mundo afora identificada por Nelson Rodrigues (1912-1980), volta-se justamente contra o time que não pode perder nunca, o nosso.

“O Mínimo Para Viver”, o excelente drama escrito e dirigido por Marti Noxon, também gira em torno de uma dessas agremiações, tentativa desesperada de encontrar saída para um problema nada engraçado, nada glamouroso, que desde sempre afeta mulheres e homens, ainda que as mulheres apareçam em número exponencialmente maior — ou, como sói acontecer, tem mais coragem de reconhecer sua vulnerabilidade, levantam da cama ou do chão frio do banheiro, e buscam ajuda logo — e continua afetando, ainda hoje, mais de quatrocentos milhões de pessoas no mundo, mais da metade jovens de até vinte anos.

O caso de Karen Carpenter (1950-1983) talvez seja o mais emblemático quando se pensa em celebridades que sucumbiram a distúrbios alimentares. A instrumentista, responsável pelos belos agudos da dupla que mantinha com o irmão mais velho, Richard, foi uma das primeiras pacientes do mundo diagnosticada com anorexia nervosa, e morreu aos 32 anos, de insuficiência cardíaca, uma comorbidade comum em portadores da doença. A partir de então, a comunidade médica, psicólogos, artistas e a sociedade em geral passou a engajar-se no combate à anorexia, com o desenvolvimento de medicações, terapias, campanhas que rodaram o mundo e a boa e velha solidariedade em acolher e ouvir os dramas dessas pessoas.

O roteiro de Noxon não menciona o nome de Karen Carpenter em nenhum momento, nem o de alguma outra personalidade que tenha morrido ou sofra com o mal. Na verdade, é muito provável que Ellen, a personagem de Lily Collins, nunca tenha ouvido falar da cantora, mas ela sabe muito bem que há algo de muito errado com sua vida. O diretor-roteirista apresenta Ellen como uma garota cheia de complexos, parte injustificados, mas em boa medida com muita razão de ser.

No argumento de Noxon, subentende-se que um trauma familiar desencadeou o processo de isolamento e depressão que abateram-na a ponto de fazê-la encontrar na magreza excessiva e patológica o atalho para o fim de um tormento que jamais teria o poder de debelar. Exagero ou não, Ellen tornou-se uma mulher insegura, triste, que faz da anorexia o último refúgio de uma vida sem sentido. Num derradeiro impulso, Susan, a madrasta, de Carrie Preston, lança mão do único método de que ainda não se socorreram, e “O Mínimo Para Viver” ganha o novo fôlego de que precisava, no momento certo.

Keanu Reeves como William Beckham, o psiquiatra responsável pelo abrigo que recebe pacientes com anorexia e bulimia em estágio mais avançado, confere um lastro de ciência e afeto ao filme, que resvala em alguns clichês tolos, quase vira um pastiche de “Garota, Interrompida” (1999), o drama realmente paradigmático de James Mangold, mas dá um cavalo-de-pau e resiste, muito graças à subtrama do romance insólito e quase maldito de Ellen — que muda de nome numa metáfora meio artificiosa, e passa a ser chamada de Eli (?) — e Luke, o bailarino interpretado por Alex Sharp. Outro perito em contagem de calorias, como Eli, o personagem de Sharp chega a ser didático sobre um problema de saúde que, conforme já se disse, alcança também os homens, e nesse caso, ainda vem embalado pela discriminação mais pedestre.

Admito que me peguei rezando para que ninguém morresse em “O Mínimo Para Viver”, mesmerizado pela força da história, torcendo para que Ellen, Eli ou como quer que ela vá desejar ser chamada, se encontrasse, se aceitasse, esquecesse um pouco sua vocação para palmatória do mundo e se permitisse viver. Fui atendido num de meus pleitos e pelo que se assiste na última cena, é razoável pensar que essa moça tenha se emendado. Quiçá ela tenha mesmo aprendido a lição, tome a vida com um pouco mais de apetite e descubra que se pode viver abdicando do signo da morte, essa senhora esquálida de que ninguém gosta. Que ela só venha no seu tempo, para todos.


Filme: O Mínimo Para Viver
Direção: Marti Noxon
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10