Filme que acaba de estrear na Netflix é um jogo de gato e rato, psicológico, arrepiante e perturbador Divulgação / XYZ Films

Filme que acaba de estrear na Netflix é um jogo de gato e rato, psicológico, arrepiante e perturbador

Alfred Hitchcock (1899-1980) desbravou um filão inesgotável ao lançar “Psicose” (1960). A obra máxima do britânico parece que deu o sopro que faltava à inspiração represada de cineastas ao redor do mundo, e desde então, histórias sobre esses homens e mulheres sem dúvida cruéis, mas também vítimas dos abusos e crimes que reproduziram — muitos com a vontade inconsciente de serem pegos, para, enfim, terem a chance de ser ouvidos —, foram sobrepondo-se umas às outras, sempre com um olhar no mínimo perturbador acerca dessas figuras. Se começamos a nos demorar na consideração dos motivos que levaram cada um a agir como feras, sem poder controlar o próprio instinto, apenas dando vazão a seus impulsos mais primitivos e tornando-se a pouco e pouco um escravo deles, vamos desenvolvendo por essas pessoas a empatia que elas nunca foram capazes de manifestar por ninguém, nem por si mesmas. Suas vidas são um entra e sai de psicólogos e psiquiatras, todos unânimes no diagnóstico de que alguma coisa está fora da ordem mais próxima da vida como ela é, o que não vem a ser exatamente um problema depois de certo estágio. Há um momento em que a loucura, de tão orgânica, não permite que se tenha o perfeito discernimento entre o que é mera fantasia e o que é de fato real.

Amber Sealey acompanha até seu último ato um tipo com essa postura diante do outro e de si mesmo em “Ted Bundy: A Confissão Final” (2021), apresentando uma ficção realista, cuja estética remete o público à linguagem documental, mas que não descuida de seu lado eminentemente aparatoso. O trabalho de Sealey é mais um filme sobre a vida de Theodore Robert Bundy (1946-1989), um maníaco tão sedutor quanto perigoso, capaz de perder muitas mulheres, atraídas por seu jeito sereno de falar. Em “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” (2019), Joe Berlinger já havia dissecado a personalidade doce de um assassino em série talvez sequioso por se redimir, mas consciente da doença que o aprisionava num temperamento bestial, mantido sob ligeiro controle à medida que alimentava seu espírito tenebroso com o prazer pelos cadáveres que largava pelo caminho.

A interpretação mediúnica de Luke Kirby personifica a aura do assassino em série fora do que se poderia definir como um arquétipo para esses personagens. Seu Ted Bundy perde a cabeça uma única vez, durante a conversa com Bill Hagmeier, o agente do FBI que não sossega até ter a chance de encontrar o facínora cara a cara. A parceria entre Kirby e Elijah Wood pontua todo o roteiro de Kit Lesser, bem abastecido de passagens mostrando o relacionamento dos dois homens, cada um muito consciente de seu papel e do lado que representa. O texto de Lesser nunca reconstitui os crimes cometidos por Bundy, mas o que poderia ser uma grande falta termina por virar o trunfo do enredo. A fotografia de Karina Silva dá aos cenários o ar avelhentado que permite que o espectador permaneça firme numa narrativa que chega a derivar pelos meandros do pensamento turbo de seu protagonista, mas volta ao leito com a mesma força. Kirby e Wood são o contraponto um do outro; há trechos em que Bundy exagera em suas elucubrações delirantes, tão próprias de uma mente perturbada, mas Hagmeier — reconhecido como um dos maiores analistas criminais do mundo depois da experiência com o psicopata, por seu turno um dos que produziram o maior estrago na larga história de barbáries nos Estados Unidos — também não resiste e parece mesmo embarcar no trem-fantasma de seu antípoda, que o tinha como um amigo. 

Ao longo de cerca de quatro anos de encontros regulares, Bundy foi confessando a Hagmeier seus trinta homicídios, todos contra mulheres e com requintes de crueldade, cometidos entre 1974 e 1978 em sete estados americanos. A esgrima retórica dos dois, no segmento final de “Ted Bundy: A Confissão Final” coroa o filme da mística funérea que essas narrativas sempre encerram, mas espaço para louvações ao monstro. Theodore Robert Bundy esperou pela indulgência do governador da Flórida até o último instante, mas foi executado na cadeira elétrica na tarde de 24 de janeiro de 1989.


Filme: Ted Bundy: A Confissão Final
Direção: Amber Sealey
Ano: 2021
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.