A última longa entrevista de Sigmund Freud

Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da psicanálise, estudou medicina em Viena. Continuou a sua formação em Paris, junto a Jean-Marie Charcot, que empregava a hipnose como tratamento para a histeria. Mais adiante, Freud desenvolveria a sua teoria psicanalítica. Sustentava que a neurose era produto da sexualidade infantil. Em 1890, publicou “A Interpretação dos Sonhos’”. Em 1902, lhe foi outorgada uma cátedra especial de neuropatologia na Universidade de Viena. A partir de então, se concentrou no estudo do comportamento psicológico e psicopatológico e no papel que desempenha a sexualidade no inconsciente. Em 1938, depois da anexação da Áustria pelos nazistas (que já haviam proibido a psicanálise na Alemanha), emigrou para o Reino Unido. Morreu vítima de um câncer na mandíbula.

 “Meus 70 anos me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.” Quem fala assim é o grande explorador das profundezas da alma. Não existe outro mortal que, como Freud, tenha estado tão próximo de encontrar uma explicação para o insondável mistério do comportamento humano.

Nossa conversa foi em sua residência de verão em Semmering, nos Alpes austríacos. Freud tinha a face contraída, como se estivesse sofrendo. Sua mente permanecia alerta, sua cortesia continuava impecável, mas fiquei alarmado com a pequena dificuldade que demonstrava ao falar. Tinha se submetido a uma intervenção cirúrgica devido a uma doença maligna na mandíbula superior. Desde então, leva implantado um aparelho para facilitar a articulação.

Sigmund Freud — Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção. Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante do que as múltiplas cargas que suportamos. Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi 70 anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol. De vez em quando tenho a satisfação de apertar uma mão amiga. Em algumas ocasiões encontrei seres humanos que quase chegaram a me compreender. Que mais se pode pedir?

George Sylvester Viereck — Seu trabalho influiu na literatura de todos os países. O homem vê a si próprio e contempla a vida com outros olhos graças ao senhor. E, por ocasião do seu setuagésimo aniversário, o mundo se uniu para prestar-lhe uma homenagem. Exceto a sua própria universidade.

Sigmund Freud — Se a Universidade de Viena me tivesse oferecido seu reconhecimento, somente teria me envergonhado. Não existe razão alguma pela qual devam reconhecimento a mim ou à minha doutrina só porque faço 70 anos. Não dou importância desmedida aos números. A fama nos chega depois da morte e, francamente, o que ocorrer depois da minha não me preocupa. Não desejo a glória póstuma.

George Sylvester Viereck — Para o senhor não significa nada que o seu nome sobreviva?

Sigmund Freud — Nada em absoluto. O futuro dos meus filhos me interessa mais. Espero que a vida deles não seja tão dura. Eu não posso torná-la mais fácil. A guerra (Primeira Guerra Mundial) praticamente acabou com a minha modesta fortuna, a poupança de toda uma vida. Por sorte, minha velhice não é uma carga muito pesada. Meu trabalho ainda me dá prazer. [Passeávamos pelo íngreme jardim de sua casa. Freud acariciou com ternura um arbusto]. Interessa-me muito mais esta planta do que qualquer coisa que possa ocorrer quando eu esteja morto.

George Sylvester Viereck — Não deseja a imortalidade?

Sigmund Freud — Sinceramente, não. Quando alguém percebe o egoísmo por trás de toda conduta humana, não sente o menor desejo de renascer. Me satisfaz saber que a eterna moléstia de viver chega finalmente ao fim. Nossa vida é composta, necessariamente, de uma série de compromissos. É uma luta sem fim entre o ego e o seu entorno. O desejo de prolongar a vida além do natural me parece absurdo. Não há razão para desejarmos viver mais tempo, mas são muitos os motivos para que queiramos fazê-lo com a menor quantidade possível de incômodos. Eu sou razoavelmente feliz porque agradeço a ausência de dor e desfruto dos pequenos prazeres da vida, da presença de meus filhos e das minhas flores. É possível que a própria morte não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Do mesmo modo que em nosso interior convivem simultaneamente o ódio e o amor por uma pessoa, a vida combina o desejo de sobrevivência com um ambivalente desejo de aniquilação. Como um elástico que tem a tendência de recuperar a sua forma original, a matéria viva, consciente ou inconscientemente, deseja conseguir de novo a inércia total e absoluta da existência inorgânica. O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo. Na sua origem a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.

George Sylvester Viereck — Em que o senhor está trabalhando?

Sigmund Freud — Escrevo uma defesa da psicanálise secular. Pretendem tornar ilegal a prática por pessoas que não sejam médicos em exercício. A história, essa velha plagiária, se repete sempre que há uma descoberta. Inicialmente, os doutores se opõem impetuosamente a toda verdade nova. Imediatamente depois, tentam monopolizá-la.

George Sylvester Viereck — O senhor já se analisou?

Sigmund Freud — Obviamente. O psicanalista deve analisar-se constantemente. Aumenta nossa capacidade de analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os demais depositam nele os seus pecados.

George Sylvester Viereck — Sempre pensei que a psicanálise necessariamente induzisse naqueles que a praticam a caridade cristã. Não há nada na existência humana que a psicanálise não nos ajude a compreender.

Sigmund Freud — Compreender tudo não é perdoar tudo. A psicanálise ensina que devemos evitar. Tolerar o mal não é em absoluto um corolário do conhecimento. Meu idioma é o alemão. Minha cultura e minhas conquistas são alemãs. Intelectualmente, me considerei alemão até perceber que os preconceitos antissemitas iam aumentando na Alemanha e na Áustria. A partir de então, deixei de considerar-me alemão. Prefiro definir-me como judeu.

Senti-me decepcionado. Ao meu ver, o espírito de Freud devia voar mais alto, acima de qualquer preconceito racial, e permanecer à margem do rancor pessoal. Não obstante, sua indignação, sua justa cólera, o faziam humanamente muito mais atraente.

George Sylvester Viereck — Agrada-me descobrir, professor, que o senhor também tem seus complexos.

Sigmund Freud — Nossos complexos são a causa de nossa fraqueza; mas também, constantemente, são a nossa fortaleza.

George Sylvester Viereck — Algumas vezes me pergunto se não seríamos mais felizes sabendo menos dos processos que dão forma aos nossos pensamentos e emoções.

Sigmund Freud — A psicanálise despoja a vida de seus encantos ao vincular cada sentimento aos complexos que a originam. Descobrir que alojamos no coração um selvagem, um criminoso, uma besta, não nos faz mais felizes.

Sigmund Freud — O que você tem contra as bestas?  Eu prefiro muito mais a companhia dos animais. São muito mais simples. Não têm uma personalidade dividida, não sofrem a desintegração do ego que surge da tentativa do homem de adaptar-se à regras da civilização. O selvagem, como a besta, é cruel, mas está livre da mesquinharia própria do ser civilizado. A mesquinharia é a maneira que o homem tem para vingar-se da sociedade pelas restrições que esta lhe impõe. É o sentimento vingativo que anima o reformista e o fofoqueiro. Um selvagem pode nos cortar a cabeça, nos devorar, nos torturar, mas nos poupará das pequenas e contínuas ferroadas que, às vezes, fazem que a vida em uma comunidade civilizada seja quase intolerável. Os hábitos e idiossincrasias mais desagradáveis do homem, sua falsidade, sua covardia, sua falta de respeito, são produtos de uma adaptação incompleta a uma civilização complexa. São o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais satisfatórias resultam as simples e intensas emoções de um cachorro que agita o rabo quando está contente ou late para manifestar irritação!

George Sylvester Viereck — Talvez o senhor seja o responsável, ao menos em parte, pelas complicações da civilização moderna. Antes da invenção da psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade está sob o domínio de uma beligerante hoste de complexos. A psicanálise converteu a vida em um complicado quebra-cabeça.

Sigmund Freud — Em absoluto. A psicanálise simplifica a vida. Depois de analisarmos, conseguimos uma nova síntese. A psicanálise reorganiza o labirinto de impulsos dispersos e tenta encaixá-los na meada a que pertencem. Ou, para mudar de metáfora, proporciona o fio que permite ao homem sair do labirinto de seu próprio inconsciente.

George Sylvester Viereck — Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus elementos fixos (a teoria da ‘substituição’, da ‘sexualidade infantil’, a ‘simbologia dos sonhos’ etc.) parecem inamovíveis.

Sigmund Freud — Isso é só o começo. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde encontrei uns poucos templos, outros podem descobrir um continente.

George Sylvester Viereck — Continua pondo o máximo de ênfase no sexo?

Sigmund Freud — Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar predominante o instinto sexual. Dado que se trata de um instinto tão poderoso, choca-se com especial frequência com as convenções e salvaguardas da civilização. Como mecanismo de autodefesa, a humanidade tenta negar a sua suprema importância. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e seguramente descobrirá em algum lado o impulso primário, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação. Não me faça parecer um pessimista. Não desprezo o mundo. Mostrar desprezo ao mundo é só uma forma a mais de adulá-lo para obter reconhecimento. Não, não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, não mais do que os outros.

*Entrevista feita por George Sylvester Vierek, em 1930, e publicada no livro “Glimpses of the Great”. No Brasil, a entrevista foi publicada originalmente no livro “A Arte da Entrevista: Uma Antologia de 1823 aos Nossos Dias”, organizado por Fábio Altman (Scritta 1995). Esta edição, republicada pela Revista Bula, foi publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, em 1998, com tradução de Claudia Rossi.