“Boca de Fumo” desloca o foco tradicional do cinema policial ao tratar a guerra às drogas menos como confronto ideológico e mais como herança familiar. Ambientado em El Paso, o filme acompanha Ray Seale, agente da DEA vivido por Dave Bautista, responsável por operações contra o cartel liderado por Benito Cabrera e sua irmã Natalia, interpretados por Tony Dalton e Kate del Castillo. A narrativa deixa claro que o centro do conflito não está apenas nas ruas ou nos esconderijos do tráfico, mas dentro das casas dos próprios agentes. Ray é um viúvo funcional, incapaz de elaborar o luto, cuja relação com o filho Cody se dissolve em protocolos e silêncios. A fronteira, aqui, não separa países: separa pais e filhos.
Cody, interpretado por Jack Champion, cresce cercado por filhos de agentes federais e absorve, quase por osmose, o funcionamento das operações que o pai prefere não explicar. Jesse, vivido por Blu del Barrio, é o elo emocional do grupo: quando seu pai morre em uma batida mal calculada da DEA, a promessa institucional de amparo financeiro se revela frágil. A iminente saída da família de El Paso não é tratada como mudança geográfica, mas como exílio afetivo. É a partir dessa perda que Cody, Yvonne, Deni e Kyle transformam conhecimento indireto em ação direta. O plano de roubar pontos do cartel nasce menos de bravura do que de desespero, expondo o equívoco central da juventude: acreditar que informação equivale a controle.
O heist como erro de cálculo
O filme acerta ao estruturar os assaltos de forma progressiva. Cada incursão é mais elaborada que a anterior, mas também mais próxima do colapso. A sensação de domínio dos adolescentes cresce na mesma medida em que o risco se torna invisível para eles. Michael Dowse dirige essas sequências com clareza espacial e ritmo funcional, evitando transformar o crime em espetáculo. O problema surge quando o roteiro tenta conciliar essa lógica juvenil com o thriller policial clássico. A presença do cartel Cabrera cumpre função narrativa, mas carece de densidade: Benito e Natalia operam como ameaças previsíveis, engrenagens reconhecíveis de um sistema já visto inúmeras vezes no cinema.
O maior acerto de “Boca de Fumo” está no efeito colateral das ações dos jovens. Ao tentar salvar Jesse, eles colocam seus próprios pais em perigo, ampliando o círculo de violência que fingiam combater. Ray percebe tarde demais que o distanciamento emocional criou um vácuo ocupado pela improvisação moral do filho. Bautista sustenta bem esse registro contido, longe do arquétipo do executor implacável. A guerra às drogas aparece, assim, como um mecanismo de repetição: filhos herdam riscos que nunca escolheram, pais colhem consequências que acreditavam controlar.
Limites e permanência
O roteiro evita aprofundar o debate estrutural sobre a política antidrogas, preferindo tratá-la como pano de fundo funcional. Essa escolha reduz o alcance crítico do filme, mas preserva sua coerência interna. O desfecho não oferece redenção nem catarse, apenas a constatação de que nenhuma dessas ações altera o sistema. “Boca de Fumo” termina como começou: com a sensação de que, nesse universo, toda tentativa de correção apenas desloca o problema para dentro de casa.
★★★★★★★★★★




