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Comédia romântica com Brittany Murphy na Netflix tem cheiro de nostalgia e gosto de carinho sincero Divulgação / Metro-Goldwyn-Mayer (MGM)

Comédia romântica com Brittany Murphy na Netflix tem cheiro de nostalgia e gosto de carinho sincero

“Grande Menina, Pequena Mulher” nunca teve paciência para pedir licença. Desde os primeiros minutos, o filme dirigido por Boaz Yakin deixa claro que sua estratégia não é esconder a melancolia sob uma camada espessa de doçura, mas deixá-la escapar pelos cantos, mesmo quando a narrativa parece brincar de comédia urbana. O resultado é um retrato irregular, por vezes desconcertante, de duas pessoas que se recusam a amadurecer da forma socialmente esperada, ainda que por motivos radicalmente diferentes.

Molly Gunn, interpretada por Brittany Murphy, cresce como uma espécie de mascote tardia da contracultura: filha de um astro do rock morto cedo demais, criada por empregados, dinheiro fácil e uma ideia vaga de liberdade. Aos 22 anos, ela confunde espontaneidade com irresponsabilidade e charme com anestesia emocional. Quando seu corretor some com toda a herança, o choque não é apenas financeiro. É existencial. Sem a blindagem do luxo, Molly é forçada a encarar o luto nunca elaborado pela morte do pai: um trauma que ela vinha administrando com festas, roupas caras e uma alegria performática que nunca convence por completo.

A criança que se autoadministração

Ray Schleine, vivida por Dakota Fanning, surge como o oposto aparente de Molly. Organizada, obcecada por limpeza, horários e rituais, ela vive em um apartamento silencioso, emocionalmente deserto. A mãe, Roma Schleine (Heather Locklear), executiva do mercado musical, terceirizou a criação da filha para babás, médicos e remédios. Ray não é apenas uma criança difícil; é uma criança que precisou aprender a se governar cedo demais. Seu comportamento compulsivo não é traço excêntrico, mas sintoma de abandono afetivo crônico.

Quando Molly aceita o emprego de babá, o choque entre as duas é imediato. A jovem adulta sem limites invade o território da menina que vive de fronteiras rígidas. Não há ternura instantânea, tampouco cumplicidade forçada. O filme acerta ao permitir que a relação se construa no desgaste, no incômodo mútuo, na percepção lenta de que ambas operam estratégias opostas para lidar com a mesma dor: a ausência de figuras parentais emocionalmente disponíveis.

Um dos gestos mais incômodos do roteiro é tratar a medicalização infantil sem reverência. Ray toma remédios para controlar aquilo que ninguém teve tempo de ouvir. O filme não demoniza a medicina, mas questiona sua função como substituta do cuidado. A mensagem é clara e pouco confortável: comprimidos ajudam a funcionar, não a viver. O subtexto ganha peso retrospectivo ao se lembrar da morte prematura de Brittany Murphy, embora o filme jamais explore isso de forma sensacionalista.

Amadurecer não é se tornar sério

Ao longo da narrativa, Molly e Ray não “se consertam”. Elas se deslocam. Molly aprende a reconhecer talento e responsabilidade sem abdicar do prazer; Ray descobre que controle absoluto não impede a perda. A presença de Neal (Jesse Spencer), músico em ascensão e interesse afetivo de Molly, funciona mais como espelho do que como solução romântica. “Grande Menina, Pequena Mulher” não pretende ser revolucionário, tampouco exemplar. Seu mérito está em defender, sem vergonha, que crescer pode significar apenas aprender a dividir o peso, e que histórias centradas em mulheres, com suas contradições e afetos imperfeitos, não precisam pedir desculpas por existir.

Filme: Grande Menina, Pequena Mulher
Diretor: Boaz Yakin
Ano: 2003
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★