Discover
Srečno novo leto: etimologias e rabugices para começar 2026

Srečno novo leto: etimologias e rabugices para começar 2026

Atrás da porta lá da despensa, a folhinha dependurada está na última página e eu me pergunto se isso são horas para aprender alguma coisa nova. Pois foi. Descobri que, em esloveno, coração e sorte têm a mesma raiz.

Pronto. Já é o suficiente, suspiro. Basta. Posso fechar o laptop, olhar para o calendário empoeirado e concluir sumariamente e com requintes de crueldade: não preciso aprender mais nada em 2025.

Em português, como todos sabemos, coração é uma coisa, sorte é outra. Normalmente, não andam de mãos dadas. O coração se apaixona, sofre, infarta. A sorte, quando muito, aparece numa raspadinha, quase nunca na mega-sena, quase sempre em um boleto vencido.

Mas nesta língua praticada aqui no sopé dos Alpes, srce (coração) e sreča (sorte, felicidade) vêm do mesmo lugar. Se não na realidade, ao menos na etimologia. Isto já é motivo para um brinde de fim de ano com espumante barato, tenho certeza.

Uma revelação deste tamanho só poderia vir mesmo em dezembro, mês sujeito a balanços inúteis, listas improváveis e reflexões que ninguém pediu — poupemo-nos dos textos de Facebook, que aí já é demais. Pois enquanto o mundo se divide entre quem ainda acredita em metas para o ano seguinte e quem já desistiu antes mesmo do Natal, lá estava eu, imigrante aplicado, tropeçando em raízes proto-eslavas e tendo uma epifania sem nenhuma utilidade prática. Melhor seria gastar meu tempo devorando o último panetone.

Convenhamos que, se coração e sorte fossem parentes próximos no Brasil, o país teria seguido outro rumo. As loterias não seriam administradas por um banco estatal — talvez ficassem a cargo do SUS. As pessoas não diriam “tive sorte”, mas sim “meu coração estava batendo no ritmo certo”. E até o Galvão Bueno iria ter de repensar a sua expressão “é teste para cardíaco”.

De acordo com os etimólogos, esses indivíduos perigosíssimos que fuçam velhos dicionários com afinco e ardor, a ideia não era de sorte como acaso, mas como estado interior. Um bom coração, um coração em ordem, um coração alinhado com o mundo: eis o beabá nervoso e visceral da felicidade, do destino favorável, dessas coisas que hoje costumam estar à venda em treinamentos coaching parcelados em 12 vezes sem juros na sua rede social favorita.

Ou seja: aqui onde moro desejar boa sorte é dizer “srečno” e, se isso parece pouco, é palavra que carrega em si uma longa trajetória histórica, um peso filosófico gigantesco. É como se alguém lhe dissesse: “Que o seu coração não falhe, nem biologicamente nem simbolicamente”. Eu já me sinto no direito de ajustar a dose do remédio para colesterol.

No Brasil, por outro lado, desejamos “boa sorte” com a mesma convicção com que dizemos “vamos marcar”. Ninguém acredita muito, eu já fico pensando até no Autran Dourado, permitindo-me o ledo engano de atribuir a um livro dele a sentença de que “a fortuna não deve durar”.

E é aí que entra o espírito de fim de ano, essa entidade metafísica que mistura sidra cereser morna, retrospectiva da televisão e promessas que sabemos que vamos esquecer de propósito. O sujeito garante que vai cuidar do coração — menos gordura, menos estresse, menos política no grupo da família — e, ao mesmo tempo, deseja sorte: no trabalho, no amor, no câmbio, na vida. Em português, são pedidos distintos. Em esloveno, é tudo a mesma coisa. Um pacote só.

Talvez por isso este seja um país onde as pessoas parecem menos aflitas em relação ao futuro. Não que não reclamem — reclamam bastante, como todo europeu decente —, mas há uma noção silenciosa de que não adianta muito torcer se o coração estiver fora de prumo. Uma heresia completa para nós, que sempre apostamos na sorte como quem aposta no último cavalo do páreo.

Confesso que a descoberta me deixou um pouco rabugento. Não com o esloveno que, coitado, não tem culpa de meus devaneios pueris. Mas com a nossa língua, que resolveu separar tudo em gavetas estanques. Coração de um lado, sorte do outro, felicidade em promoção relâmpago, fortuna só se vier. Depois reclamamos que nada funciona — e que alguma das gavetas está emperrada de tanto entulho.

E é tarde demais para qualquer espírito reformista. Não dá para, de repente, decretar que coração também significa sorte e esperar que o país melhore até o carnaval, que já vem dobrando a esquina. Mas dá para terminar o ano com essa ideia incômoda na cabeça: e se a sorte não fosse algo que cai do céu, mas algo que se constrói por dentro?

Não vou virar místico por causa disso. Muito menos criar eu mesmo um curso coaching para vender em prestações na internet. Continuo achando que dezembro é superestimado e que janeiro começa sempre entre mal-humorado e preguiçoso. Mas admito: há algo de profundamente irritante — e elegante — numa língua que sugere que, no fundo, o destino começa no peito.

Então, já que é fim de ano e todo mundo anda meio sentimental, encerro como aprendi por aqui: srečno. Que o coração aguente. E que a sorte, se existir, ao menos saiba onde mora.

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.