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No Looke: o filme mais bonito que você vai ver quando achar que nada presta Divulgação / K5 International

No Looke: o filme mais bonito que você vai ver quando achar que nada presta

Antes do sol subir de vez, Paterson acorda num quarto simples, veste o uniforme e desce a rua até a garagem de ônibus. No caminho, ele repara em detalhes que guarda em silêncio, como matéria-prima. Em “Paterson”, Adam Driver e Golshifteh Farahani, ao lado de Barry Shabaka Henley, atuam sob a direção de Jim Jarmusch, e o conflito central se fixa na tentativa do motorista de sustentar trabalho e vida a dois sem abandonar a escrita que depende justamente dessa regularidade.

Paterson decide dirigir sempre o mesmo trajeto, cumprir horários e evitar conversa desnecessária porque isso mantém o dia previsível. A motivação é prática: ele conhece cada curva e sabe que um turno sem surpresa rende menos desgaste. O obstáculo é que o ônibus é um lugar público e as vozes carregam conflitos, bravatas, planos, frustrações. Mesmo calado, ele escuta. O efeito é um cotidiano em que a calma precisa ser refeita a cada parada, e em que uma frase alheia pode grudar e voltar mais tarde, pedindo alguma forma no caderno.

Laura e os projetos dentro de casa

Em casa, Laura decide não aceitar a mesma repetição. Ela pinta, muda a decoração, inventa projetos, pede opinião, tenta vender coisas que faz. A motivação é ampliar o horizonte doméstico e testar uma autonomia possível. O obstáculo é que as ideias se acumulam mais rápido do que o dinheiro e o tempo do casal. Paterson, ao chegar, prefere apoiar sem administrar. O efeito é uma convivência em que o entusiasmo dela empurra o dia para a frente e a reserva dele tenta segurar o ritmo para não perder o chão.

Versos no almoço e vozes do trajeto

No intervalo do almoço, Paterson decide ir ao mesmo banco, abrir o caderno e escrever. Ele rabisca. Apaga. Reescreve. Fecha. A motivação é proteger os versos do barulho do terminal e do próprio cansaço. O obstáculo é o tempo curto e a tentação de apenas observar a cidade, como se observar já fosse suficiente. O efeito é um hábito frágil, que só existe porque ele escolhe insistir em minutos roubados, enquanto o relógio do turno empurra o corpo de volta ao ônibus.

Durante o dia, ele encontra conversas que não pediu: dois jovens discutem amor com teatralidade, um passageiro fala de armas como se fossem brinquedo, um casal se ferra em ciúme num banco de trás. Paterson decide ouvir sem intervir, motivado pelo instinto de não transformar trabalho em debate. O obstáculo é que a fala alheia entra pela cabeça e não sai fácil, ou melhor, não sai quando ele tenta dormir. O efeito é que algumas dessas frases reaparecem no caderno, filtradas pela disciplina de quem escreve pouco e volta ao serviço.

Laura também toma decisões que mudam o ritmo do casal. Ela resolve testar receitas, planeja vender cupcakes, ensaia canções no violão e insiste em se apresentar. A motivação é buscar reconhecimento fora de casa, ainda que modesto. O obstáculo é o cansaço dele, a insegurança dela e a presença do cão Marvin, que impõe sua própria rotina e arrasta Paterson para a caminhada noturna. O efeito é que o dia não termina quando o ônibus encosta; ele continua na coleira, na rua escura, na volta para uma casa cheia de desenhos e planos.

Doc, Jarmusch e a repetição que muda tudo

O bar de Doc vira uma terceira linha do filme. Paterson decide passar ali para tomar uma cerveja e ouvir histórias, motivado pelo hábito e pela necessidade de encerrar o dia sem se isolar. O obstáculo é que Doc e os frequentadores vivem pequenos dramas, e a conversa do balcão nunca é neutra. Paterson fica, escuta, pesa as palavras. O efeito é que a cidade entra na sua escrita por vias tortas, enquanto ele tenta manter a vida pessoal fora do espetáculo, como se fosse possível separar tudo.

Jarmusch reforça a repetição sem transformar a semana em monotonia automática. As cenas retornam aos mesmos lugares, e a câmera insiste em trajetos familiares, o que altera a percepção do tempo e faz qualquer desvio parecer maior. Paterson decide manter o caderno como coisa privada, motivado por pudor e por uma ideia de proteção. O obstáculo é que privacidade, numa casa pequena, depende de acaso e cuidado. O efeito aparece quando um acontecimento doméstico simples altera o que estava guardado, e ele precisa escolher entre calar ou recomeçar.

Depois disso, Paterson escolhe continuar acordando cedo, dirigindo, ouvindo, voltando para Laura e para o bar, mas com uma mudança discreta na forma de escrever. Ele caminha até o lugar onde costuma pensar, aceita que não recupera palavra por palavra, e segue. A motivação é recomeçar sem negar o que perdeu. O obstáculo é o medo de repetir esforço e ver tudo desaparecer de novo. O efeito final é uma imagem quieta: um banco, uma página em branco, a mão parada por um segundo antes do primeiro verso.

Filme: Paterson
Diretor: Jim Jarmusch
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★