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Na HBO Max: Hugh Jackman e Rebecca Ferguson num filme que não grita — só te puxa para dentro Divulgação / Warner Bros.

Na HBO Max: Hugh Jackman e Rebecca Ferguson num filme que não grita — só te puxa para dentro

Num Miami que convive com água na canela e letreiros de neon refletidos em avenidas alagadas, Nick Bannister ganha a vida oferecendo lembranças como serviço. Ele atende num prédio discreto, onde um tanque com cabos, sedativos e fones promete devolver, por alguns minutos, o que foi perdido. Em “Caminhos da Memória”, Hugh Jackman, Rebecca Ferguson e Thandiwe Newton atuam sob a direção de Lisa Joy, e o conflito central se arma quando Nick se apaixona por uma cliente que desaparece e ele passa a persegui-la dentro e fora das próprias recordações.

Nick decide manter a clínica aberta como negócio de bairro, mesmo com a cidade abandonada por partes e com o crime impondo regras de circulação. A motivação é prática: pagar contas e sustentar uma rotina que o mantém longe de outras lembranças, as dele. Ali dentro, ele controla dose e duração, conduz a conversa, encerra a sessão quando o cliente tenta ficar. O obstáculo é que o serviço cria dependência, e a clientela volta com pressa, pedindo mais tempo, mais detalhe, mais consolo. O efeito é um trabalho que parece assistência, mas vira vício administrado, com Nick sempre calculando quanto pode ceder sem perder o comando.

Quando Mae aparece, Nick escolhe fazer mais do que o protocolo prevê. Ela procura uma lembrança pequena, quase banal, e ele decide entrar com ela no registro e conduzir o caminho, como se fosse uma busca doméstica por chaves perdidas. A motivação mistura gentileza e atração imediata, um impulso de ajudar e de se aproximar. O obstáculo é que as imagens trazem lacunas que não parecem inocentes, e Mae desvia perguntas com respostas curtas, sempre no limite do aceitável. O efeito é simples: a cliente deixa de ser cliente, e a regra de não se envolver passa a parecer, para ele, uma formalidade dispensável.

Na sequência, Nick decide transformar encontros em relação, aceitando horários fora do expediente e levando Mae para um circuito que não pertence à clínica. Ele quer uma vida normal, ou pelo menos uma versão dela, com passeios por passarelas altas e conversas em apartamentos onde a água bate na fachada. O obstáculo é que Mae evita passado, some por períodos inteiros e reaparece com explicações que não fecham, insistindo para que ele não force intimidade. O efeito é uma proximidade feita de recortes, em que Nick preenche vazios com vontade, enquanto a cidade ao redor, barulhenta e úmida, lembra que nada ali se sustenta por muito tempo.

Mae some e a memória vira investigação

Quando Mae desaparece, Nick escolhe tratar a ausência como pista, não como fim. Ele revisa registros, volta ao tanque, procura o último rastro, ou melhor, procura uma sequência que faça sentido antes que a falta vire rotina e o caso se dissolva na água da cidade. A motivação já não é só desejo; é a necessidade de confirmar que não foi manipulado no básico. O obstáculo é um ambiente em que todo mundo tem motivo para mentir, inclusive quem está apaixonado, e em que uma lembrança pode ser montada para agradar, proteger ou lucrar. O efeito é uma investigação que sai do balcão e entra em becos, bares e apartamentos onde a pergunta principal muda de forma a cada porta aberta.

Ele volta ao tanque. Muitas vezes. Rápido. Preciso. Um clique no gravador. Luz baixa. O som do motor. Nick decide reencenar o mesmo trecho, perseguindo um gesto, uma frase, um carro estacionado fora do quadro. A motivação é acumular evidência antes que a interpretação escape. O obstáculo é que a repetição corrói, porque a memória registrada não traz contexto garantido, e o que parece prova pode ser só ângulo. O efeito aparece no corpo e no humor: isolamento, insônia, impaciência, uma raiva que ele tenta maquiar quando volta à rua.

Violência contida e a direção de Lisa Joy

Com o que recolhe, Nick decide sair do perímetro seguro e confrontar gente ligada ao passado de Mae, atravessando áreas onde a água vira barreira e esconderijo. Ele negocia entradas, mede ameaças, compra tempo, e em cada etapa precisa escolher entre recuar com dúvidas ou avançar com perdas concretas. A motivação é fechar um desenho mínimo do que aconteceu; o obstáculo é que os grupos que mandam ali não toleram curiosidade gratuita e respondem com recados diretos. O efeito é uma escalada de violência contida, feita de perseguições curtas, olhares longos e silêncios que pesam mais do que tiros.

Lisa Joy organiza esse percurso alternando o presente alagado com passagens de lembrança que chegam com nitidez enganosa, como se a imagem fosse mais confiável do que a pessoa. Quando Nick descreve o que vê, a direção estreita o foco e deixa detalhes fora de campo, obrigando o espectador a trabalhar com a mesma falta de informação que move o personagem. O obstáculo narrativo é que cada revelação vem filtrada por desejo e culpa, e a montagem desloca certezas ao repetir uma cena sob outro recorte. O efeito é um thriller que depende de decisões íntimas, não de tecnologia milagrosa, e que deixa ancorado um gesto simples: a mão de Nick hesitando no botão de iniciar, como se escolher lembrar fosse também escolher perder.

Filme: Caminhos da Memória
Diretor: Lisa Joy
Ano: 2021
Gênero: Mistério/Romance/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★