Christine Lucas acorda sobressaltada, olha para um homem ao lado e precisa fingir calma enquanto procura um fato sólido. No mesmo quarto, poucos minutos bastam para ela perceber que não lembra do dia anterior, nem do rosto no travesseiro. Em “Antes de Dormir”, Nicole Kidman contracena com Colin Firth e Mark Strong sob a direção de Rowan Joffé, e o conflito se instala quando Christine tenta reconstruir a própria história, mas recebe versões concorrentes de quem diz amá-la e de quem diz tratá-la.
Ao longo do dia, Christine decide aceitar a rotina que Ben, o marido, apresenta como segura: café, conversa repetida, pequenas instruções para não se perder. A motivação é pragmática, ficar em casa reduz a chance de se expor e diminui o pânico de não reconhecer ruas ou pessoas. O obstáculo é o apagão noturno que devolve tudo ao zero, obrigando Ben a escolher o que repete e o que omite. O efeito é uma intimidade forçada, na qual cuidado e controle começam a se confundir.
Na primeira consulta, o Dr. Nash propõe um acordo que exige segredo. Christine decide encontrá-lo fora do alcance de Ben e seguir orientações simples, gravar depoimentos e assistir a eles ao acordar, porque quer uma linha contínua que não dependa da memória. O obstáculo é que esse plano transforma o lar em território hostil: ela precisa esconder um telefone, inventar saídas, evitar perguntas. O efeito imediato é uma nova fonte de informação e um novo risco, já que qualquer deslize pode fechar a única ponte que ela construiu para a manhã seguinte.
Rotina em disputa: o que Ben omite
Com os vídeos, a cada manhã Christine encara a si mesma com uma franqueza que ninguém mais oferece. Ela decide testar detalhes pequenos, a disposição dos móveis, uma fotografia, o caminho até a janela, para medir onde a narrativa de Ben encaixa e onde falha. A motivação é recuperar autonomia por verificação, não por fé. O obstáculo está no tempo curto antes de a confusão voltar e na ansiedade que cresce ao perceber incoerências. O efeito é um cotidiano dividido entre viver e conferir, passo a passo, o que ela acabou de viver.
Mais tarde, fragmentos do passado surgem como flashes secos: um corredor, um rosto, um acidente lembrado pelo corpo antes da cabeça. Christine decide seguir essas migalhas e sair do script doméstico, visitando um lugar que lhe parece familiar e tentando localizar alguém ligado à vida anterior. A motivação é simples, se a lembrança apareceu, ela pode levar a um fato. O obstáculo é não saber se o impulso é memória ou sugestão, além do medo de se perder. O efeito é um aumento de exposição e a sensação de que cada pista abre outra pergunta.
Vigilância, perímetro e decisões sob pouca margem
Quando Ben percebe mudança de comportamento, ele decide apertar a vigilância com justificativas de proteção, e Christine reage com dissimulação, guardando o que descobre para si. A motivação de ambos é clara, ele quer preservar uma rotina que o mantém no comando, ela quer preservar o direito de perguntar. O obstáculo, para Christine, é a dependência prática, o dinheiro, a casa, a própria fragilidade. O efeito é um casamento transformado em disputa de versões, em que a gentileza pode virar ferramenta e a impaciência aparece quando a rotina sai do combinado.
Ben toma decisões que reorganizam o perímetro: define horários, controla deslocamentos, escolhe quando ela pode sair e com quem fala. Christine, por sua vez, decide romper esse perímetro por uma tarde e confrontar uma informação específica que aparece nos registros, porque entende que a dúvida não cabe mais dentro do apartamento. O obstáculo é o pouco tempo antes do esquecimento e a possibilidade de provocar uma reação imediata. O efeito é uma urgência íntima em que um endereço e um objeto banal passam a orientar uma decisão tomada sob pouca margem.
Rowan Joffé e o suspense por lacunas
Joffé filma essas oscilações com cortes que imitam a interrupção da lembrança e com mudanças de foco que deslocam a autoridade de uma fala para uma imagem guardada. Cada vez que Christine aperta o play, o ponto de vista muda: o espectador deixa o presente instável e entra num relato gravado, mais duro e menos conciliador. O obstáculo narrativo é que nenhuma fonte é completa, e a montagem insiste em atrasar uma informação enquanto adianta outra. O efeito é uma tensão de baixa temperatura, sustentada por detalhes que parecem triviais até virarem ameaça.
Ao final, Christine escolhe continuar registrando e esconder os arquivos onde possam sobreviver à próxima noite, porque sua continuidade depende de repetição e cautela. O obstáculo permanece físico e inevitável, o sono que interrompe, reorganiza e apaga, e que pode transformar um acerto em erro pela manhã. O efeito fica num gesto doméstico, a tela acesa no escuro, o volume baixo, a respiração contida, como se a verdade precisasse caber num quarto antes de caber numa vida.
★★★★★★★★★★






