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Baseado em clássico de Clarice Lispector, drama brasileiro com Fernanda Montenegro é joia rara na Netflix Divulgação / Raíz Produções Cinematográficas

Baseado em clássico de Clarice Lispector, drama brasileiro com Fernanda Montenegro é joia rara na Netflix

“A Hora da Estrela” não se esforça para ser agradável. Desde os primeiros minutos, Macabéa ocupa a tela como um corpo deslocado, quase um erro estatístico no Rio de Janeiro urbano e industrial. Vivida por Marcélia Cartaxo com uma entrega desconcertante, ela trabalha como datilógrafa, come mal, dorme pior e atravessa a cidade como quem pede desculpa por existir. Não há glamour, nem alívio estético. A narrativa escolhe acompanhar essa jovem nordestina sem instrução, sem família e sem repertório simbólico para entender o mundo que a cerca. O desconforto é deliberado: o filme exige que o espectador sustente o olhar onde normalmente prefere desviar.

A ignorância de Macabéa não funciona como gag nem como traço pitoresco. Ela desconhece regras básicas de convivência, confunde palavras, repete slogans de rádio como se fossem pensamento próprio. Ainda assim, há nela uma forma peculiar de alegria mínima. Quando afirma ser virgem, datilógrafa e gostar de Coca-Cola, encontra aí uma definição suficiente de identidade. Essa precariedade intelectual, longe de infantilizá-la, revela o quanto foi privada de escolhas. A personagem não decide pouco porque quer; decide pouco porque nunca lhe ensinaram que decidir era uma possibilidade.

O amor como promessa vazia

O encontro com Olímpico, interpretado por José Dumont, não oferece redenção. Ele também veio do Nordeste, também carrega a ambição confusa de ascender socialmente, mas responde à exclusão com brutalidade e autopromoção. Olímpico sonha com fama, poder e respeito, sem entender exatamente o que significam. Ao trocar Macabéa por Glória, vivida por Tamara Taxman, ele apenas reproduz a lógica de descarte que o oprime. A relação entre os dois não é romântica nem trágica no sentido clássico: é funcional, pobre de afeto e rica em silêncio.

A direção de Susana Amaral evita sentimentalismo e não concede à protagonista qualquer transformação edificante. A câmera acompanha Macabéa sem piedade, mas também sem cinismo. Há um interesse claro em preservar sua opacidade: ela nunca se torna símbolo abstrato nem alegoria fácil. Mesmo nos momentos em que o riso surge, ele vem contaminado por culpa. Amaral constrói uma narrativa seca, quase antinarrativa, onde cada gesto cotidiano pesa mais que grandes acontecimentos. A recusa em explicar demais é parte da força do filme.

A cartomante e a mentira necessária

A entrada da cartomante interpretada por Fernanda Montenegro introduz uma ruptura cruel. Pela primeira vez, Macabéa escuta uma promessa de felicidade, sucesso e amor. Essa mentira, dita com convicção teatral, funciona como presente tardio: alguém finalmente lhe oferece um futuro. O impacto não está na previsão em si, mas no modo como ela passa a caminhar pela cidade acreditando, ainda que por minutos, que merece algo além da sobrevivência. A violência do desfecho reside justamente aí.

O incômodo que permanece

“A Hora da Estrela” não busca consolo nem redenção social. O que fica é a sensação de cumplicidade forçada: ao acompanhar Macabéa, o espectador reconhece o quanto sua existência foi ignorada sem escândalo. O filme não pede lágrimas, pede responsabilidade. Ele lembra que há vidas inteiras atravessadas sem testemunhas, e que olhar para elas não é um gesto de bondade, mas de justiça mínima.

Filme: A Hora da Estrela
Diretor: Suzana Amaral
Ano: 1985
Gênero: Coming-of-age/Drama/Tragédia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★