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De uma aldeia na Ucrânia ao quarto de pensão no Rio: ela enterrou a mãe, criou um filho doente e mudou a literatura brasileira Acervo / IMS

De uma aldeia na Ucrânia ao quarto de pensão no Rio: ela enterrou a mãe, criou um filho doente e mudou a literatura brasileira

A luz do estúdio é reta, quase clínica. A câmera avança até encontrar uma mulher de rosto exausto, cabelos presos sem rigor, cigarro entre dedos que tremem de leve. Ela responde devagar, o olhar se desvia por um segundo para fora do quadro, como se algo atrás da lente a chamasse. A voz é baixa, áspera, arrasta vogais, esconde o riso. Fala de infância, de escrita, do desconforto de estar ali. Nada naquela situação convida ao encantamento. O que se impõe é um incômodo antigo, enfim exposto. Mais tarde, dirão que foi a última vez que Clarice Lispector apareceu diante de uma câmera.

Nos arquivos oficiais, outro nome. O de batismo, áspero em português, vinha de uma aldeia pobre na Podólia, região hoje ucraniana, onde famílias judias viviam sob ameaça constante. Soldados cruzavam vilarejos, deixavam corpos na neve, levavam o pouco que havia. O pai resolveu sair antes que fosse tarde. A mãe já trazia no corpo uma doença que consumia músculos e dignidade. A menina tinha pouco mais de um ano quando o navio deixou a Europa.

O desembarque em Maceió não trouxe promessa de recomeço radiante. A cidade os recebeu com calor úmido e ruas onde o comércio era um arranjo precário pendurado em portas e janelas. O pai virou mascate, carregando tecidos e promessas num português inseguro. A mãe, abatida, recolheu-se a um quarto escuro. Faltava comida, sobrava trabalho, o idioma da rua não se parecia com nada que ela conhecia. Nesse ambiente, a criança começou a ouvir palavras novas sem abandonar as que vinham da casa. Para ela, língua nunca seria um território único.

Depois vieram o Recife e o bairro da Boa Vista, prédios antigos, pontes baixas, o rio correndo devagar. A comunidade judaica oferecia algum amparo, ritos conhecidos, datas que insistiam em lembrar celebrações enquanto a doença avançava sobre o corpo materno. Por volta dos nove anos, Clarice perdeu a mãe. A casa pareceu diminuir. O pai se fechou, as irmãs seguiram como podiam, a menina aprendeu a guardar sofrimento em silêncio.

Na escola, os livros eram alívio e impacto. Lia romances baratos, histórias cor-de-rosa, lado a lado com autores que a atiravam em outra escuridão. Não havia lista planejada, havia urgência. Começou a escrever cedo, enchendo cadernos com diálogos, cenas, fragmentos de uma vida que ainda não existia. Mandou alguns textos a um suplemento infantil, que não respondeu. Outros se perderam entre gavetas e lixo. A certeza, porém, ficou. Era no papel que a existência ganhava peso suportável.

Em 1935, o navio Highland Monarch levou a família ao Rio de Janeiro. A travessia tinha outra paisagem, não outro risco. O pai ainda apostava numa ascensão difícil, sem sobressaltos. A filha imaginava um destino menos previsível. Instalada em quartos alugados na Tijuca, dividia o tempo entre estudo e trabalho em jornal. Entrou na Faculdade de Direito, percorreu redações, aprendeu a redigir notas rápidas, cortar o supérfluo, adaptar frases ao espaço estreito da coluna. A rotina do noticiário trouxe concisão. O que escapava desse molde era reservado para a noite, quando os textos seguiam outra cadência.

Em 1943, uma editora pequena colocou nas livrarias um volume discreto, fora de lugar no mercado brasileiro. “Perto do Coração Selvagem” evitava trama reconfortante e cenário familiar. A protagonista pensava sem descanso, quebrava a sequência da narrativa, examinava objetos com uma precisão que beirava a crueldade. Uma parte da crítica reagiu com estranhamento, outra com espanto diante da maturidade daquela voz jovem. Alguns leitores mais atentos perceberam ali uma ruptura no modo dominante de escrever prosa no país. A autora, com pouco mais de vinte anos, não se alinhava a nenhum dos modelos em circulação.

Clarice Lispector
A menina refugiada que perdeu a mãe no Recife, atravessou a diplomacia e incendiou a prosa brasileira como Clarice Lispector

O casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente a levou para longe. Nápoles em tempo de guerra, soldados brasileiros feridos, paredes marcadas por bombas. Depois, cidades na Suíça, em Portugal, nos Estados Unidos. Em cada parada, um apartamento provisório, recepções de embaixada, conversa treinada sobre literatura e política, a expectativa de elegância ao lado do marido. Em mesas afastadas do salão, ela estendia folhas e tentava preservar um espaço de solidão que não tinha explicação social. Escreveu romances densos, cartas longas, diários. Combateu um tédio que não se resolvia mudando de país, nascia do desajuste entre o papel que desempenhava e o que a movia por dentro.

Os filhos vieram nesse vaivém. Pedro nasceu em Berna, Paulo em Washington. Muitos anos depois, o diagnóstico de esquizofrenia do primogênito acrescentaria uma camada de cansaço que nenhum manual diplomático contempla. O tema da doença na família se apresentava de novo, sob outra forma. O casamento terminou após mais de uma década de deslocamentos. Clarice voltou ao Rio em 1959 com os dois meninos e uma obra já iniciada, mas incapaz de garantir estabilidade financeira. Além de escrever, precisava pagar contas, acompanhar a escola dos filhos, enfrentar consultas médicas, negociar com editoras, traduzir à noite para cobrir o orçamento.

Do apartamento no Leme saíram “Laços de Família”, “A Paixão Segundo G.H.”, crônicas, contos, livros para crianças. A ficção se adensou em cenários cada vez mais reduzidos: um quarto de empregada, uma sala, uma cozinha onde a colher suspensa não encontra o caminho de volta ao prato. Não havia panorama de fazenda nem multidões. Havia uma mulher diante de uma barata, uma dona de casa parada diante do armário aberto, uma funcionária calada atravessando o corredor com pratos. A ação essencial se concentrava no que não se via, inscrita em frases que rasgavam a superfície do cotidiano. Parte do público estranhou e se afastou. Outra parte se reconheceu ali pela primeira vez.

Em 1966, no meio da noite, o fogo. Um cigarro esquecido sobre a cama incendiou lençóis e cortinas, arrancou um grito que acordou vizinhos. Tiraram-na do quarto às pressas. O braço direito ficou gravemente queimado, a mão que segurava a caneta virou carne exposta, protegida por bandagens. Houve ameaça real de amputação, golpe direto no gesto que organizava a vida. A recuperação foi lenta, marcada por dor e recolhimento. Ela deixou o hospital com cicatrizes visíveis, outro ritmo ao andar, menos disposição para se mostrar em público. A escrita, porém, manteve-se. “Água Viva”, anos mais tarde, carregaria algo da secura e do delírio de quem escreve acompanhado pela memória da dor.

Entre 1967 e 1973, as crônicas no “Jornal do Brasil” levaram sua voz a leitores que talvez nunca abrissem os romances. Ali surgiam cachorros, vizinhas, motoristas de táxi, feiras de bairro. As histórias raramente se resolviam de maneira linear. Um encontro de elevador podia desembocar numa pergunta sem resposta, numa suspeita de que havia um buraco sob o chão polido do cotidiano. O regime militar apertava o país, notícias de prisões e tortura circulavam com dificuldade. Clarice fixava o olhar num fio de cabelo na pia, numa tarde de domingo que não passa, no cansaço discreto de uma passageira de ônibus. Guardava o tempo em detalhes.

Nos últimos anos, a atenção se voltou para uma figura quase invisível. Macabéa, jovem alagoana que datilografa num escritório opaco, vive num quarto de pensão, come pouco, quase não fala. “A Hora da Estrela”, publicado em 1977, acompanha essa existência modesta até o atropelamento que encerra a narrativa sem transformá-la em símbolo grandioso. O narrador, um escritor inquieto, debate consigo mesmo o direito de contar essa história, sente vergonha do gesto e continua. Muitos leitores enxergaram aí uma aproximação explícita de Clarice com a pobreza e a desigualdade brasileiras. Talvez ela apenas desse forma e endereço ao que já rondava outros livros, sem assumir contornos tão diretos.

Logo após entregar o original à editora, o corpo começou a falhar de modo mais evidente. Dores espalhadas, cansaço persistente, exames sucessivos, até a internação que não se conseguiu evitar. O diagnóstico de câncer de ovário apareceu quando já havia pouco espaço para intervenção. Ela entrou e saiu de cirurgias, recebeu amigos e familiares, pediu notícias pequenas da rua, conversou com a amiga que ajudava a organizar papéis e cadernos. Morreu em dezembro de 1977, às vésperas de completar cinquenta e sete anos, numa cama de hospital no Rio. Foi enterrada no Cemitério Israelita do Caju, numa cerimônia simples, acompanhada por um grupo reduzido de parentes, amigos, alguns leitores.

Depois disso, o rosto da mulher avessa a entrevistas se espalhou por capas de livro, cartazes, murais, camisetas. Trechos de conversas foram recortados e rearranjados. Frases sem origem clara começaram a circular assinadas com seu nome. Ao mesmo tempo, a obra ganhou novas edições, conquistou outras línguas, atraiu estudos que a colocavam ao lado de autores que tinham povoado a adolescência da menina em Recife. A figura pública cresceu a tal ponto que quase apagou a pessoa reservada que evitava aparecer.

Na gravação antiga, guardada em vídeo, ela acende mais um cigarro, mexe no cabelo, volta o rosto para o lado num gesto breve que parece se alongar. A pergunta seguinte já foi formulada, mas, por um instante, ninguém fala. Toda a história cabe nesse intervalo, no espaço entre uma palavra e outra, entre o gesto e a ideia, entre o fato bruto e a frase que tenta contê-lo. Clarice sempre se manteve nesse lugar em suspenso, onde ainda não há resposta, só uma respiração irregular que insiste em continuar apesar dos limites da linguagem.

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