Em um apartamento alugado numa rua barulhenta de São Paulo, uma mulher de quarenta e poucos anos passa a manhã reescrevendo a infância de alguém que nunca viu pessoalmente. O arquivo no computador leva o nome de um apresentador de TV; na pasta de notas, entretanto, só aparecem siglas e um número de projeto. Ela avança devagar, ajustando tempos verbais, aparando redundâncias, escolhendo entre “pânico” e “medo forte” enquanto o celular vibra com mensagens do editor cobrando o cronograma. O livro será lançado em três meses. Na capa, a foto da celebridade; na folha de rosto, um agradecimento genérico “à equipe de redação”.
O que faz um ghostwriter e quanto ele ganha
Na definição mais direta, um ghostwriter é um autor contratado para escrever material que será assinado por outra pessoa. Pode ser um livro, um discurso, uma coluna, um relatório. O cliente detém a autoria e, em geral, o copyright, enquanto o profissional de escrita desaparece da ficha catalográfica e das entrevistas de divulgação. No mercado internacional, esse tipo de trabalho sustenta memórias de celebridades, livros de negócios e autobiografias de políticos. Pesquisas com autores de não ficção indicam que muitos recorrem a ghostwriters para transformar fala em texto contínuo, com medianas de pagamento entre 25 e 50 mil dólares por livro em segmentos corporativos.
Quando o nome na capa é mais conhecido e a expectativa comercial é alta, os valores sobem. Relatórios de agências especializadas em “celebrity ghostwriting” falam em faixas de 50 mil a 250 mil dólares por um único volume assinado por astro do esporte ou artista global, com projetos que ultrapassam 90 mil dólares apenas na escrita, sem incluir assessoria de imprensa. O pacote envolve entrevistas longas, viagens, acesso a documentos privados, leitura de processos e arquivos de família; por alguns meses, o ghostwriter se torna guardião de memórias e reputações. No Brasil, os números são menores, mas a lógica se repete: o valor depende da fama do cliente, do tamanho do livro, da urgência e do grau de invisibilidade que o escritor aceita.
Reportagens recentes descrevem um mercado brasileiro em expansão, impulsionado pela escalada de influenciadores e pela ideia de que “todo especialista precisa de um livro” para consolidar autoridade profissional. Editoras boutique, agências literárias e profissionais autônomos oferecem pacotes que vão de biografias familiares a manuais de empreendedorismo, passando por memórias corporativas e livros de autoajuda assinados por coaches. Um trabalho de conclusão de curso da Universidade Federal de Santa Catarina já distinguia, há mais de uma década, três ramos principais: livros técnicos, autobiografias de celebridades e biografias encomendadas. Desde então, a categoria “influenciador digital” entrou na lista de clientes com peso próprio.
Como esses livros são de fato escritos
No dia a dia, o processo é menos glamouroso do que o produto final sugere. Ghostwriters relatam rotinas que começam com entrevistas gravadas — às vezes presenciais, cada vez mais por videochamada — em que o cliente despeja histórias, bordões, conselhos. Essas conversas são transcritas, rearranjadas, complementadas com pesquisa e, muitas vezes, confrontadas com versões anteriores da mesma trajetória, já registradas em reportagens e perfis. Um escritor que trabalha com atletas costuma cruzar recordes oficiais, notícias de jornal e relatos emocionados do cliente com o olhar de quem precisa transformar “ganhei tudo” em capítulos que façam sentido.
Os contratos vêm quase sempre blindados por cláusulas de confidencialidade. Na maioria dos casos, o ghostwriter recebe um valor fixo, pago em parcelas, e abre mão de qualquer participação em direitos autorais, mesmo que o livro venda muito. Em outros, consegue emplacar um crédito discreto — “com X”, “em colaboração com Y” — ou uma porcentagem pequena das vendas, cenário descrito em artigos internacionais como exceção, não regra. A negociação inclui conversas sobre quem decide cortes, quem aprova o tom das passagens delicadas, quem responde se houver ações judiciais por difamação ou uso indevido de imagem.
O uso de escritores fantasmas não é recente. Textos de história intelectual lembram que discursos políticos e pronunciamentos oficiais já eram redigidos por terceiros no século 19, no Brasil e fora dele, e que presidentes e monarcas recorriam a colaboradores para escrever falas e manifestos sem assinar. A diferença contemporânea está na escala: o que antes se restringia a gabinetes hoje sustenta um mercado global de autobiografias rápidas, manuais de liderança e livros de “história de vida” que precisam chegar às prateleiras em poucos meses para aproveitar um pico breve de exposição.
Essa aceleração cobra um preço simbólico. Ao olhar uma vitrine ou o carrossel de uma loja virtual, o leitor vê capas que prometem proximidade: “minha vida”, “minha verdade”, “minhas regras”. Raramente está claro quem organizou essa voz em texto, quais passagens foram reconstruídas com apoio de pesquisa, quais foram suavizadas para não melindrar parceiros comerciais ou partidos políticos. Um ghostwriter que hoje trabalha para executivos no Brasil ajuda a construir a imagem de “autoridade” de consultores e CEOs com livros que, na prática, funcionam como cartões de visita sofisticados em eventos de negócios e plataformas digitais.
Autoria, sigilo e desconforto para quem lê
A discussão ética é inevitável. Em áreas como medicina e pesquisa, organizações de integridade científica tratam ghostwriting como prática problemática quando textos são assinados por pesquisadores que não participaram da redação, o que pode esconder conflitos de interesse e manipulação de dados. Em livros de celebridades, a fronteira é menos rígida, mas a pergunta permanece: até que ponto é aceitável que um leitor compre um título acreditando na voz direta de alguém que pouco lidou com as frases impressas? Entidades como a Society of Authors, no Reino Unido, pedem há anos mais transparência nos créditos de memórias de figuras públicas.
Ghostwriters brasileiros também se dividem nesse ponto. Alguns encaram o trabalho como prestação de serviço, próxima de redigir relatórios técnicos ou campanhas publicitárias, e fazem questão de permanecer fora dos holofotes. Outros, sobretudo quem vem da literatura ou do jornalismo, relatam desconforto ao reconhecer muito de si em textos que saem sem qualquer menção. Uma escritora de não ficção conta que já recusou projetos em que o cliente exigia recontar episódios controversos sem margem para checagem mínima. Outra diz aceitar apenas trabalhos em que possa ser creditada como “organização” ou “texto”, mesmo em fonte menor na capa.
O que torna o tema mais sensível é a promessa vendida a muitos contratantes: não apenas um livro, mas uma identidade pública organizada no papel. Consultores de marketing de autoridade oferecem pacotes que envolvem livro, palestras, cursos on-line; o manuscrito é o pilar que sustenta o resto. Nesse arranjo, o ghostwriter ocupa um lugar híbrido entre artesão de frases e arquiteto de reputação, ainda que a retribuição financeira e simbólica raramente reflita o peso dessa função. O desequilíbrio entre quem assina, quem escreve e quem lucra ajuda a explicar por que a escrita fantasma continua sendo um dos pontos menos transparentes do mercado editorial contemporâneo — presente em estantes recém-organizadas, feeds de livrarias on-line e listas de mais vendidos, quase sempre sem o crédito correspondente ao trabalho que as sustenta.



