Não foi a “Netflix” quem escolheu estes filmes, nem o onipresente Top 10 diário da plataforma, nem o algoritmo que decide o que aparece na tela inicial. Para chegar a uma lista dos cinco longas lançados em 2025 que mais impressionaram, emocionaram e intrigaram a crítica, a “Revista Bula” recorreu a outro termômetro: o das redações que, há décadas, ajudam a organizar o imaginário cinéfilo em diferentes países. Em vez de contar cliques, contaram-se argumentos; em vez de medir minutos assistidos, mediu-se insistência crítica, recorrência em listas e consistência dos elogios.
O ponto de partida foram quinze casas de crítica que qualquer cinéfilo reconhece de longe. Dos Estados Unidos vieram “The New York Times”, “Los Angeles Times”, “The Washington Post”, “The New Yorker”, “Variety”, “The Hollywood Reporter” e o site “RogerEbert.com”, herdeiro direto da tradição de um dos críticos mais influentes do século 20. Do Reino Unido, “The Guardian”, “Sight & Sound” (revista do British Film Institute) e “Screen International/Screen Daily”. Da França, “Le Monde” e “Cahiers du Cinéma”; da Espanha, “El País”; da Itália, “la Repubblica”; da Alemanha, a “Süddeutsche Zeitung”. Juntos, esses veículos representam linhas estéticas e interesses distintos, mas compartilham um mesmo grau de exigência.
O levantamento considerou apenas filmes lançados em 2025 com disponibilidade na “Netflix” — seja como originais produzidos para o streaming, seja como títulos distribuídos com exclusividade pela plataforma. A partir daí, cruzaram-se três camadas de informação: presença em listas de “melhores do ano (até agora)” e balanços de festivais, notas altas em resenhas assinadas por críticos de referência e recorrência em textos analíticos que voltavam a citar os mesmos títulos ao longo dos meses. Quando um filme surgia ao mesmo tempo nas páginas do “The New York Times”, em uma resenha calorosa do “The Guardian” e em menção elogiosa de “Cahiers du Cinéma”, por exemplo, ganhava peso adicional no cálculo.
O resultado não é um ranking de audiência, e sim um recorte de prestígio. “Sonhos de Trem”, de Clint Bentley, foi acolhido como herdeiro delicado de uma tradição contemplativa americana, evocando nomes como Terrence Malick em publicações europeias e norte-americanas. “A Vizinha Perfeita”, de Geeta Gandbhir, surgiu com frequência em textos sobre documentário político, violência racial e leis de “stand your ground”. “Frankenstein”, de Guillermo del Toro, foi descrito por mais de um crítico como o trabalho mais maduro da carreira do diretor. “Casa de Dinamite”, de Kathryn Bigelow, reacendeu debates sobre cinema político hollywoodiano e a ética das narrativas de ameaça nuclear. “Jay Kelly”, de Noah Baumbach, apareceu em listas de melhores do ano como retrato incômodo da masculinidade envelhecida e do custo afetivo da fama.
Mais do que apontar um único “vencedor”, essa convergência de quinze redações espalhadas pelo mundo indica algo raro: em um ano em que a “Netflix” lançou dezenas de longas, cinco deles atravessaram fronteiras, idiomas e bolhas de gosto para se firmar como experiências cinematográficas que os críticos quiseram defender, explicar e revisitar. A partir desse consenso improvável, começa a lista.
Divulgação / NetflixEste documentário reconstrói, em detalhes, um conflito de vizinhança na Flórida que começa com pequenas irritações cotidianas e termina em homicídio, expondo as fissuras de uma comunidade dividida por raça, medo e desconfiança. A narrativa se apoia em imagens de câmeras corporais da polícia, registros de chamadas de emergência e arquivos judiciais para mostrar como uma discussão aparentemente banal se transforma em tragédia irreversível. A diretora acompanha familiares, amigos e moradores da região, revelando como cada lado interpreta o episódio a partir de suas próprias experiências, traumas e expectativas em relação à justiça. O filme também investiga o impacto das leis locais de legítima defesa, em especial a chamada regra de “defenda seu território”, desnudando o modo como dispositivos legais podem ser acionados de maneira desigual dependendo da cor da pele das pessoas envolvidas. Ao combinar material de arquivo com depoimentos emocionados, a produção evita simplificações fáceis e evidencia a desintegração de uma comunidade que antes se via como unida. No centro de tudo permanece a dor dos que perderam um ente querido, confrontada com a tentativa da acusada de justificar suas ações, num retrato duro da forma como preconceito estrutural, legislação permissiva e tensão cotidiana podem convergir para um desfecho fatal.
Divulgação / NetflixEste suspense político em tempo quase real acompanha a equipe de gerenciamento de crises da Casa Branca quando radares detectam um míssil nuclear em rota em direção ao território norte-americano, cuja origem ninguém consegue identificar. Com poucos minutos para agir, militares, conselheiros e figuras do alto escalão do governo se reúnem em salas de situação subterrâneas, tentando decifrar se o ataque é um erro de cálculo, um teste, uma provocação de potência rival ou um gesto terrorista isolado. Enquanto dados incompletos chegam de diferentes agências, crescem as divergências sobre a resposta adequada: contra-atacar preventivamente, ganhar tempo em busca de confirmação ou confiar em sistemas de defesa que talvez não funcionem como prometido. A narrativa alterna entre esses bastidores de poder e o impacto psicológico nas pessoas encarregadas de decidir o destino de milhões, expondo medos íntimos, traumas de guerra e conflitos éticos que entram em choque com protocolos rígidos. A diretora constrói tensão num crescendo constante, evitando respostas definitivas sobre a autoria do ataque e sobre a decisão final, para sublinhar a fragilidade de um mundo em que a sobrevivência coletiva depende de poucos indivíduos enclausurados em salas sem janelas, rodeados por telas, gráficos e relógios que correm rumo à zero hora.
Ken Woroner / NetflixNesta releitura gótica do clássico literário de Mary Shelley, um cientista brilhante e egocêntrico dedica sua vida a desafiar os limites da morte, convencido de que pode recriar a centelha que anima o corpo humano. Obcecado por sua própria genialidade, ele recolhe fragmentos de corpos e constrói uma nova criatura, sem medir as implicações éticas e emocionais do experimento. Quando o ser ganha consciência, nasce também um abismo entre o desejo de ser aceito e a repulsa que encontra em praticamente todos à sua volta. Ao longo da história, acompanhamos o embate entre criador e criação em mansões sombrias, laboratórios cheios de engrenagens e paisagens europeias tomadas por neblina, onde cada cenário reflete o estado emocional desses personagens dilacerados. A produção enfatiza o ponto de vista do ser reanimado, explorando sua descoberta do mundo, o medo diante da própria aparência e a busca desesperada por afeto em figuras que lhe oferecem breves lampejos de humanidade. Com fotografia luxuosa, trilha musical lírica e performances de forte carga dramática, o longa transforma a conhecida história de terror em uma meditação trágica sobre solidão, responsabilidade e o preço de brincar de deus.
Divulgação / Pascal PicturesNeste drama de tom melancólico com toques de humor, um astro de cinema na casa dos sessenta anos decide acompanhar a filha mais nova numa viagem pela Europa, tentando se aproximar dela antes que a jovem saia de casa definitivamente. Ele imagina dias tranquilos, mas descobre que a garota já planejou o passeio com amigos e não quer a presença do pai, o que expõe anos de afastamento emocional. Em paralelo, o protagonista precisa participar de um tributo a um diretor que foi decisivo em sua carreira e que morreu recentemente, evento que o obriga a confrontar escolhas passadas, amizades rompidas e ressentimentos antigos. Ao lado de um empresário leal, que mistura função profissional e amizade verdadeira, ele cruza cidades e hotéis de luxo enquanto o próprio mundo interior parece desmoronar sob o peso de processos judiciais, manchetes negativas e relações familiares em ruínas. A narrativa avança entre encontros constrangedores, tentativas fracassadas de reconciliação com a filha mais velha e memórias de um tempo em que o sucesso parecia justificar qualquer ausência. Aos poucos, o personagem percebe que nem o prestígio, nem as homenagens públicas conseguem preencher o vazio deixado pelas conexões que negligenciou, transformando a viagem em um inventário doloroso de tudo o que não pode ser refeito.
Divulgação / Black BearNuma paisagem de florestas densas e trilhos recém-assentados no início do século 20, acompanhamos a rotina silenciosa de um lenhador que trabalha na expansão das ferrovias pelos Estados Unidos, dividindo-se entre o esforço físico exaustivo e o desejo de construir um lar estável. Órfão desde cedo, ele encontra tardiamente o afeto em uma mulher com quem forma uma pequena família, mas o trabalho o obriga a passar longos períodos distante da esposa e da filha. A sensação de estar sempre em trânsito contamina também sua vida interior: o personagem vive entre a culpa de quem nunca está presente e o encantamento de quem descobre, quase com espanto, que é capaz de amar. Quando uma tragédia corta esse frágil equilíbrio, o passado passa a ser revisitado em fragmentos, como se cada lembrança estivesse gravada na paisagem das montanhas, nas pontes que ajudou a erguer e nos trens que cruzam a região. A história constrói um retrato profundamente sensorial de um homem comum, explorando luto, memória e a passagem do tempo com imagens contemplativas que aproximam a rudeza do trabalho manual de uma espécie de poesia melancólica.



