O filme acompanha um astro de cinema em entressafra, acostumado a red carpets e entrevistas em série, que percorre mais uma turnê de divulgação pela Europa ao lado do empresário que arruma seus horários e apaga pequenos incêndios antes que cheguem às manchetes. Em “Jay Kelly”, Noah Baumbach coloca George Clooney no centro dessa comédia dramática sobre um homem que sempre teve alguém para ajeitar o entorno, mas nunca encarou de frente as próprias relações. Adam Sandler, como o agente, e Laura Dern, como a assessora, giram em torno desse conflito simples e doloroso: manter a carreira em movimento enquanto a vida íntima dá sinais de desgaste avançado.
Baumbach usa o rosto de Clooney como material dramático. O sorriso treinado, o cabelo impecável, a maneira automática como ele ocupa cada corredor de hotel indicam alguém que conhece o valor de cada aparição. Quando aceita uma homenagem ou senta para mais uma entrevista em que repete as mesmas histórias, a decisão nasce menos de entusiasmo do que de medo de desaparecer do noticiário. A graça está em acompanhar o que acontece depois, quando as piadas usadas para quebrar o gelo viram muralhas e o silêncio dos outros passa a dizer mais do que qualquer elogio decorado.
Ron, o empresário vivido por Sandler, é quem tenta manter tudo em pé. Ele compra passagens, negocia salas cheias, administra telefonemas de estúdio e, ao mesmo tempo, espera algum reconhecimento que nunca vem. Quando insiste para que o cliente aceite participar de um tributo a um diretor importante em sua trajetória, mistura cálculo profissional e desejo sincero de ver o amigo lidar com uma dívida afetiva antiga. O obstáculo é um ator acostumado a escapar de qualquer corredor que possa levá-lo a um pedido de desculpas, e a viagem transforma o velho pacto entre os dois numa conversa cada vez mais franca sobre lealdade e uso.
Ao longo do percurso, figuras familiares e antigos parceiros aparecem para lembrar o preço cobrado por tantos anos de agenda lotada. Uma filha que fala com o pai famoso como se estivesse numa ligação de trabalho, o colega de escola de atuação que nunca esqueceu o papel perdido, o pai envelhecido que carrega um passado muito menos glamouroso do que as fotos penduradas na suíte de hotel. Cada reencontro depende de um gesto banal, atender a um telefonema, aceitar um café rápido, aparecer num jantar, mas o filme insiste justamente nos momentos em que essas decisões são adiadas. Os corredores que ligam quartos e salas ficam mais vazios a cada negativa, e o brilho dos eventos parece cada vez mais artificial.
Visualmente, “Jay Kelly” se aproxima de um filme de estrada elegante, mas inquieto. Linus Sandgren filma trens, aeroportos e salões de festival com luz cuidadosamente polida, como se cada superfície espelhada escondesse histórias que ninguém quer revisitar. Há um movimento constante entre grandes salões superiluminados, onde o protagonista repete versões ensaiadas de si mesmo, e corredores estreitos, quase sempre observados em planos mais longos, reservados às conversas em que algo realmente importante pode mudar, ou melhor, às conversas em que ele acredita ainda controlar o rumo e descobre, aos poucos, que já perdeu essa vantagem. A trilha de Nicholas Britell desliza de um tom leve que acompanha as gags para notas discretas que avisam quando a comédia cede lugar a um risco emocional maior.
Clooney trabalha num registro de charme cansado. Um ajuste na gravata. Um olhar rápido para o espelho do elevador. Um sorriso ligeiramente atrasado quando alguém lembra um erro antigo. O corpo fala de cansaço, mesmo quando ele posa para fotos. Sandler vem em linha oposta, quase sempre um passo atrás, carregando casacos, pastas, celulares. Um pedido dito em voz baixa. Uma bronca engolida. A química aparece em detalhes, na forma como um interrompe o outro, nas frases que ficam pela metade, na irritação que passa rápida, mas deixa rastro.
O elenco ao redor ajuda a dar espessura a essa espécie de saga familiar espalhada por cidades diferentes. Laura Dern faz da assessora uma bússola ética cansada, que tenta proteger o cliente de ataques externos e, às vezes, dele mesmo. As atrizes que interpretam as filhas aparecem pouco, mas cada aparição desloca prioridades, como se um simples pedido de presença derrubasse planejamentos cuidadosos. Nessas passagens, o filme se aproxima de “História de um Casamento” e “A Lula e a Baleia”, interessado em registrar o instante em que alguém percebe ter sido deixado em segundo plano durante anos.
Nem tudo tem o mesmo peso. Em alguns diálogos de acerto de contas, personagens falam de maneira excessivamente direta, quase listando mágoas, e a ambiguidade se perde um pouco. Ainda assim, Baumbach confia o bastante nos atores para deixar que longos planos registrem um desvio de olhar, uma mão que aperta a borda da cadeira, um corpo que hesita na porta antes de sair do enquadramento. Quando a narrativa conduz Jay a uma homenagem em que precisa se colocar diante de um público devoto, o risco finalmente acompanha o tamanho de tudo o que vinha sendo evitado. O gesto de cruzar aquele corredor final, entre bastidores e palco, resume com clareza o tipo de melancolia que o filme prefere perseguir em vez de resolver.
★★★★★★★★★★




