Um dos tesouros da Biblioteca Nacional: a coleção completa de uma das primeiras revistas de humor do Brasil

Um dos tesouros da Biblioteca Nacional: a coleção completa de uma das primeiras revistas de humor do Brasil

“O Malho” foi uma das revistas ilustradas mais influentes do Brasil na primeira metade do século 20. Publicada no Rio de Janeiro, então capital federal, circulou de 1902 a 1954 e se afirmou como referência em humor gráfico, comentário político e cobertura da vida urbana. Ao mesmo tempo em que exaltava a República, o título expôs desigualdades, conflitos de poder e visões hierarquizadas sobre raça, classe e território.

A criação de “O Malho” esteve ligada ao jornal carioca “A Tribuna”. Desde os primeiros anos, a revista investiu em rotativas de alta capacidade, impressão em cores e distribuição nacional. Tiragens de dezenas de milhares de exemplares foram sustentadas por publicidade e preço de capa mais baixo que o de outros títulos ilustrados, ampliando o alcance entre leitores de classe média urbana.

Em termos editoriais, “O Malho” combinava sátira a governantes, comentários sobre obras públicas, acompanhamento de eleições e observações de costumes. Seções dedicadas à Câmara, ao Senado e à administração municipal transformavam votações, discursos e manobras parlamentares em cenas cômicas, com legendas curtas e diretas. A revista tratava ainda de tarifas, impostos, serviços urbanos e educação, traduzindo temas complexos em imagens e frases acessíveis para um público que nem sempre acompanhava o noticiário político diário.

A publicação funcionou também como espaço de experimentação estética para caricaturistas e escritores. Desenhistas ligados à caricatura política consolidaram estilos que influenciaram revistas posteriores e jornais diários. Os textos acompanhavam essa produção com crônicas, versos satíricos e notas breves, combinação que ajudou a fixar a caricatura como linguagem central da crítica política na imprensa brasileira e fez do semanário referência obrigatória para estudos sobre humor gráfico.

O engajamento político de “O Malho” aparece com força na campanha eleitoral de 1910. A revista apoiou Hermes da Fonseca contra Rui Barbosa, associando o jurista ao civilismo paulista e à elite cafeicultora. A participação do senador Antonio Azeredo na sociedade reforçou a leitura de que o semanário dialogava diretamente com disputas parlamentares. A crise que levou à queda de Sabino Barroso da presidência da Câmara é frequentemente citada como exemplo do peso simbólico dessas charges.

A cobertura de conflitos urbanos ajuda a dimensionar o papel da revista no debate público. Na Revolta da Vacina, em 1904, charges mostraram a campanha de vacinação obrigatória, a violência policial e a insatisfação popular com reformas conduzidas de cima para baixo. Na Revolta da Chibata, em 1910, caricaturas trataram das reivindicações dos marinheiros e da anistia, revelando tensões entre disciplina militar e demandas por dignidade no trabalho, embora o olhar da revista permanecesse ancorado na perspectiva das elites urbanas.

Ao lado da crítica a autoridades, “O Malho” ajudou a fixar imagens estereotipadas de trabalhadores, pessoas negras e habitantes do interior. Algumas edições recorreram a piadas abertamente racistas, como as que sugeriam “câmaras inodoriantes” para plateias negras em teatros, e a figuras como o “Jeca” para representar o Brasil rural como espaço de atraso e ignorância. Esses recursos revelam como o projeto de modernização apoiado pela revista excluía grande parte da população e naturalizava hierarquias sociais e raciais.

A Revolução de 1930 e o Estado Novo alteraram o ambiente para o humor político. “O Malho” se opôs à Aliança Liberal, teve edições suspensas e enfrentou censura explícita e velada. Uma charge que representava a Revolução como figura grotesca, associada ao diabo, tornou-se símbolo desse conflito. No período posterior, a revista preservou seções de humor e comentário, mas reduziu ataques diretos ao governo federal, concentrando a sátira em temas de costumes, administrações locais e tipos sociais menos sensíveis para o regime.

Nas décadas de 1930 e 1940, o título continuou a circular, porém já sob forte concorrência de novos meios. O rádio se consolidou como veículo de massa, o cinema sonoro ampliou sua presença nas capitais e revistas ilustradas baseadas em fotografia, como “O Cruzeiro”, passaram a ocupar parte do espaço que antes cabia aos semanários de caricatura. “O Malho” manteve leitores fiéis, mas perdeu centralidade no mercado e viu sua fórmula tornar-se menos eficaz diante de mudanças de gosto e de hábitos de consumo cultural.

O encerramento da circulação, em 1954, decorreu dessa combinação de fatores: transformação tecnológica, reconfiguração do mercado e dificuldades financeiras. Mesmo assim, o legado de “O Malho” permaneceu. A tradição de charges políticas em jornais diários, a figura recorrente do “Zé Povo” e o uso de tipos sociais caricaturados em momentos de crise institucional guardam relação direta com práticas desenvolvidas nas páginas da revista ao longo da primeira metade do século 20.

Hoje, o acervo de “O Malho” está preservado e digitalizado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e pode ser consultado gratuitamente. Esse conjunto de edições, disponível em alta resolução, permite acompanhar a evolução gráfica do título, identificar continuidades e rupturas na abordagem de temas políticos e sociais e oferecer material de pesquisa para historiadores, jornalistas, professores e estudantes interessados em imprensa, cultura urbana e história do humor.

Analisar a trajetória de “O Malho” significa observar como a imprensa brasileira aprendeu a condensar conflitos complexos em imagens rápidas, irônicas e muitas vezes agressivas. As páginas preservadas mostram uma revista capaz de expor contradições da República, denunciar abusos e ironizar poderosos, mas também de reiterar preconceitos, excluir vozes e ridicularizar grupos vulneráveis. Essa dupla dimensão ajuda a entender por que o título ocupa lugar central nos estudos sobre humor político e por que seu acervo permanece fundamental para discutir imprensa, democracia e memória social no Brasil.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.