A narrativa começa com a viagem de barco dos agentes federais Teddy Daniels e Chuck Aule até uma ilha isolada, sede do Hospital Ashecliffe, destinado a criminosos considerados insanos. A missão oficial é investigar o desaparecimento de uma paciente condenada por assassinato, que teria sumido de dentro de uma cela trancada sem deixar rastro. Ao desembarcar, a dupla encontra portões pesados, guardas armados e um clima de desconfiança que mistura protocolo policial e disciplina militar. O mar agitado, a névoa e o controle rígido de acesso sugerem que aquele território foi pensado para impedir qualquer saída.
Logo nos primeiros encontros com a direção da instituição, “Ilha do Medo” apresenta sua tensão central. Teddy, interpretado por Leonardo DiCaprio, reage com ceticismo às explicações técnicas e à documentação fornecida, enquanto o diretor vivido por Ben Kingsley insiste em um discurso de avanço científico e tratamento humanizado. Ao lado do parceiro Chuck, papel de Mark Ruffalo, o agente tenta reconstruir os passos da paciente desaparecida, entrevista funcionários, cruza depoimentos de enfermeiras e observa a rotina dos internos. Dirigido por Martin Scorsese e adaptado do romance “Paciente 67”, de Dennis Lehane, o filme vincula essa investigação ao histórico de guerra, luto e culpa que acompanha o protagonista.
O enredo se desdobra em duas linhas que se cruzam continuamente. De um lado está o caso concreto da paciente que some de um quarto fechado, com uma anotação enigmática como única pista. De outro, o mergulho progressivo de Teddy em lembranças do front europeu, do campo de concentração que ajudou a libertar e da tragédia familiar que o assombra no continente. A tempestade que atinge a ilha reforça o cerco. Ventos fortes, cortes de energia e a suspensão das saídas deixam claro que ninguém partirá dali antes da hora. Quanto mais a chuva engrossa, mais a administração controla deslocamentos, prontuários e acesso a alas cada vez mais restritas.
Scorsese utiliza a gramática do thriller para conduzir o espectador por corredores estreitos, pátios de concreto e escadarias úmidas. A câmera acompanha Teddy enquanto ele rastreia pistas, confere registros, desconfia de respostas prontas e tenta deduzir a lógica por trás do desaparecimento. As entrevistas com pacientes revelam gestos nervosos, olhares desviados e frases interrompidas por olhares de enfermeiros e médicos. A sensação é de que, além do caso oficial, há uma trama paralela que não chega aos relatórios. O suspense nasce da distância entre a narrativa institucional apresentada pela direção e o que os espaços parecem indicar nas entrelinhas.
Leonardo DiCaprio concentra o foco dramático ao mostrar Teddy como alguém sempre à beira da exaustão. As crises de enxaqueca, o enjoo no barco, o jeito de acender um cigarro com as mãos trêmulas e a dificuldade para dormir indicam um corpo que reage a cada estímulo da ilha. As memórias do campo de concentração e da casa em chamas que marcou sua vida privada invadem a investigação em forma de sonhos, visões e flashbacks. Cada som abrupto, cada porta que bate, cada corpo estirado no chão conecta o presente da missão a um passado que o personagem tenta manter sob controle.
Mark Ruffalo, como Chuck, atua como contrapeso e referência de normalidade. O personagem faz perguntas mais diretas, tenta manter o registro organizado em blocos de anotações, sugere cautela nas acusações e pede para aguardar orientações. A relação entre os dois se define dentro de carros, em caminhadas sob chuva e em conversas breves antes de novos interrogatórios. Quando Teddy passa a formular hipóteses sobre experimentos abusivos, intervenções cirúrgicas e conivência de autoridades externas, Chuck reage com desconforto e prudência, o que ajuda a medir o grau de confiabilidade do olhar do protagonista.
Ben Kingsley compõe um diretor de hospital que raramente altera o tom de voz. Sentado em seu escritório ou acompanhando os visitantes por alas cercadas, ele descreve o lugar como laboratório para um novo tipo de tratamento, menos punitivo e mais voltado à mente. A serenidade contrasta com a presença de celas escuras, contenções físicas e guardas em alerta permanente. O discurso procura normalizar protocolos que, na prática, mantêm pacientes isolados e sob medicação intensa. Esse contraste entre fala, uniforme branco e cenário reforça a sensação de que a instituição produz suas próprias versões da realidade.
A fotografia explora diferenças entre ambientes externos e internos. Do lado de fora, a ilha oferece penhascos, vegetação rarefeita, mar revolto e um farol que se impõe no horizonte como ponto de vigilância constante. Dentro do hospital, as salas de reunião exibem poltronas confortáveis, janelas amplas e iluminação controlada, enquanto as alas de segurança máxima acumulam ferrugem, infiltrações e grades. As passagens entre esses espaços marcam mudanças de clima na narrativa. A trilha sonora, composta por peças orquestrais e sons graves, aparece em momentos de descoberta ou delírio, sempre em diálogo com ruídos de portas, passos ecoando e sirenes distantes.
A montagem alterna a linha da investigação com os mergulhos na mente de Teddy. Um interrogatório em Ashecliffe pode se conectar a uma lembrança da guerra, que retorna depois em um sonho na cabine do barco ou em uma visão no quarto do hospital. Essa alternância produz um suspense psicológico em que informação e contrainformação se acumulam sem oferecer base segura. Cada pista nova, como uma anotação escondida, um gesto de um interno ou um detalhe em uma ficha, reforça ao mesmo tempo o avanço da investigação e a dúvida sobre o estado mental do protagonista.
“Ilha do Medo” apresenta um ambiente em que paranoia e culpa ganham forma concreta na rotina da ilha. Barcos que não partem, portões que se fecham antes da hora, remédios oferecidos em copos plásticos, guardas que observam conversas à distância e arquivos trancados constroem o cenário de um sistema que controla o fluxo de informação. Com o farol aceso recortando a névoa sobre as rochas e o hospital erguido atrás de muros úmidos, a ilha permanece como imagem material de um cerco que não se desfaz.
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