Esse Neo-Western com 97% de aprovação parece feito por Tarantino — e tá na Netflix Divulgação / Synapse Distribution

Esse Neo-Western com 97% de aprovação parece feito por Tarantino — e tá na Netflix

Um jovem vendedor de facas para na lanchonete do posto em uma estrada deserta e aguarda a reposição de combustível que teima em não chegar. A rotina se desorganiza quando dois forasteiros aparecem e o confinamento forçado transforma a sala de azulejos brancos em palco de negociações, mentiras e ameaças. A promessa de uma parada breve cede lugar a um impasse que contamina funcionários e clientes, enquanto uma notícia de crime nas redondezas paira sobre cada gesto. Ainda no início, “A Última Parada do Arizona” apresenta seu núcleo dramático, com direção e roteiro de Francis Galluppi e elenco com Jim Cummings, Jocelin Donahue, Sierra McCormick e Richard Brake.

O cenário é direto e funcional, com poucas portas, janelas largas e um balcão que separa quem pede de quem serve. A fotografia preserva a secura do ambiente, com cores desbotadas e luz dura coerentes com a aridez do entorno. A trilha musical aparece de modo esparso para marcar respirações e hesitações, permitindo que o som ambiente conduza boa parte da inquietação. A montagem evita atalhos fáceis e prolonga olhares que dizem mais do que confissões apressadas. Cada novo personagem que atravessa o batente altera o equilíbrio precário, reforçando a sensação de rotina virada do avesso por um imprevisto que se alonga.

O enredo avança pela lógica das escolhas. O vendedor de facas, interpretado por Jim Cummings, precisa decidir quando falar e quando calar. A cliente vivida por Jocelin Donahue mede palavras e tenta adiar o inevitável. Os homens que chegam exibem carisma e ameaça em doses calculadas, e a ambiguidade sustenta o suspense. O roteiro confia no poder dos detalhes, de uma mão que treme a um olhar desviado, de um copo d’água recusado a uma resposta que tarda. Esses pequenos sinais desenham uma cartografia moral que interessa mais do que qualquer explicação didática.

Francis Galluppi administra com firmeza o tempo dramático. A espera pela gasolina vira bússola da narrativa, e a repetição de gestos cotidianos constrói uma contagem regressiva invisível. Quando a violência irrompe, obedece a uma cadência crua, sem efeito pirotécnico. O registro evita ornamentação e favorece decisões concretas, como onde se posicionar, o que esconder e a quem proteger. A câmera mantém distância suficiente para mapear a geografia do espaço e explicitar o risco de cada deslocamento.

As interpretações contribuem para a solidez do conjunto. Jim Cummings explora a vulnerabilidade de um homem educado pela cortesia que aprende depressa as regras de um território hostil. Jocelin Donahue oferece firmeza e cálculo sem perder a dimensão de alguém que conhece os limites daquela estrada. Sierra McCormick sustenta a atenção nos intervalos, trabalhando silêncios e respostas curtas que defendem a personagem. Richard Brake imprime frieza sem caricatura, mantendo a ameaça em registro contido. A direção conduz o elenco a um tom econômico, e o resultado preserva a verossimilhança de um dia que deu errado em lugar nenhum do mapa.

O filme dialoga com tradições do faroeste sem se apoiar nelas. Está ali a moral do deserto, a noção de que a lei demora a chegar e de que todos carregam alguma dívida com o passado. Mas a história prefere o pragmatismo do cotidiano, de notas amassadas, café morno e relógio que não colabora. A iconografia clássica do Oeste cede espaço a um retrato miúdo de trabalho e cansaço, no qual as escolhas se encurtam e a coragem assume formas pouco heroicas. Esse recorte favorece um olhar atento à ética de sobrevivência quando o dinheiro é curto e o medo mora perto.

Outro mérito está na condução do espaço. O posto, a lanchonete e a área externa formam um triângulo de forças em constante reconfiguração. Galluppi entende que a aderência do suspense depende da clareza sobre quem vê quem, quem escuta quem e quem tem acesso a quê. Por isso cada mudança de posição importa, a mesa que vira obstáculo, a porta que revela uma rota possível, a janela que expõe. O desenho de som reforça esse arranjo com rangidos, motores ao longe e passos que antecedem presenças indesejadas.

O roteiro evita revelar além do necessário e deixa que a tensão cresça por acúmulo. Há margem para dúvida sobre intenções e limites, o que sustenta o interesse mesmo quando a narrativa se concentra em poucos ambientes. Informações sobre a região, a economia do lugar e os hábitos dos frequentadores ancoram a trama em realidade observável. Frases curtas substituem floreios verbais e, sob aparente cordialidade, escondem medo e orgulho. Esse recato dá ao filme uma solidez rara em histórias de confinamento.

Quando o cerco estreita, o conflito central assume contornos mais nítidos, entre cumprir ordens que podem custar vidas e arriscar um gesto capaz de mudar o rumo daquele dia. O diretor mantém o controle dos níveis de tensão e não transforma a violência em espetáculo. Os planos respeitam a dignidade dos personagens sem aliviar a dureza do que está em jogo. O ritmo não corre para conveniências e tampouco se arrasta, preferindo o passo cauteloso de quem mede consequências a cada movimento.

Há espaço para uma leitura social discreta. A parada esquecida na estrada reflete uma economia periférica que depende de caminhões, pequenos serviços e trocas rápidas. A sensação de abandono amplia a presença do medo, e relações de confiança nascem e se desfazem em minutos. Essa moldura não engole a trama, apenas a torna mais crível. Trata-se de gente tentando pagar contas, proteger quem ama e voltar inteira para casa.

O filme encerra seu arco de maneira coerente com a lógica sustentada desde a primeira cena. Não há soluções mágicas, e o peso das ações permanece com quem as tomou. Fica a impressão de que aquela paisagem continuará a produzir histórias parecidas, movidas por falta de tempo, sorte e gasolina. A estrada segue aberta, e a próxima parada pode repetir o mesmo dilema em outro quilômetro de poeira.

Filme: A Última Parada do Arizona
Diretor: Francis Galluppi
Ano: 2023
Gênero: Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★