Não a conheci numa reunião dos alcoólicos anônimos. Não, isso não. Dotado da minha porção mulher que até então se resguardara — como diria Gilberto Gil — marcamos um encontro num bar situado entre Ipanema e Leblon. Só eu compareci. Eu a reconheci de longe, por causa do farol fulminante de seus olhos agateados e uma voz rascante informando ao maître que uma pessoa já não lhe aguardava mais. Cumprimentamo-nos com um friorento aperto de mãos. Puxei uma cadeira, mas ela se sentou do outro lado da mesa. Ofereci-lhe Cuspe Sour. Ela disse que andava abstêmia nas últimas horas. Puxei conversa. Diva do cancioneiro, ela fez questão de me responder com os versos das suas canções mais famosas, cantando, lindamente, à capela.
— Como anda você, sumida? — comecei.
— Arrasada. Acabada. Maltratada. Torturada. Desprezada. Liquidada. Sem estrada pra fugir… — ela disse, sorridente, ao passo em que acendia um Jeronimo’s.
— Toma alguma coisa?
— Deixa eu beber teu perfume, embriagar. Beba comigo a gota do sangue final.
— Sempre a sedutora irresistível… Não sei bem ao certo o que dizer.
— Não se perturbe, nem fique à vontade. Me veja nos seus olhos, na minha cara lavada.
— Eu soube que você parou com a bebida. É uma notícia maravilhosa, sabia?
— Me acalmo danando. No início é difícil de se abandonar um vício. Mas, ganhar é bem melhor que desistir.
— Você parece muito bem.
— Atrás desse rostinho, eu tenho um fogo angelical. Por dentro do vestido, eu guardo um corpo infernal.
Rimos desbragadamente. O garçom se aproximou.
— Quer pedir algum petisco de entrada? — eu perguntei, depois de bebericar o meu drinque.
— A droga do seu beijo até me envenenar. A mim e a mais ninguém. Viciei em você.
— Você está saidinha…
— É o que pulsa o meu sangue quente. É o que faz meu animal ser gente. É o meu compasso mais civilizado e controlado. Meu corpo voltou a se agitar. E se eu mudei, devo a você todo o desamor que a vida me ensinou. Coração aberto. Felicidade perto. Sou toda amor.
— O amor quase sempre é uma tolice.
— Tola foi você, ao me abandonar, desprezando tanto amor que eu tinha a dar. Agora, veja bem, o mal é vai e vem. Só esperar.
— Não acredito que você me queira mal. Você sempre foi uma companheira carinhosa e protetora.
— Agradeço tanto. Agradeço por você não ser do jeito que eu sou.
— Não foi culpa minha se a gente deixou de se entender.
— Às vezes, até, na vida é melhor ficar bem sozinho. Pra gente sentir qual é o valor de um simples carinho. Amar é sofrer, eu vou te dizer, mas vou duvidar. Querendo ou não, o meu coração já quer se entregar.
— O que você deseja de mim, afinal?
— Não sei, meu amor, nem quero saber. Só sei que à noite, sorrindo acordada, sonhei com você.
— Você tem cuidado da sua saúde?
— Estou deixando o ar me respirar. Bebendo água pra lubrificar. Mirando a mente em algo producente. Meu alvo é a paz. Eu já arranhei minha garganta toda atrás de alguma paz.
— Fico feliz por isso.
— Vou carregar de tudo vida afora: marcas de amor, de luto e espora. Deixo alegria e dor ao ir embora.
— Ninguém é perfeito. Todo mundo erra, acerta, sorri e chora. A gente não é máquina, já deu pra perceber, né?
— Amo a vida a cada segundo, pois, para viver, eu transformei meu mundo.
— O pior já passou. Você viveu momentos conturbados, teve a privacidade devassada pela mídia e a sua vida virada de cabeça para baixo…
— Loucura é loucura, não me compreenda. Loucura é loucura, pior é a emenda. Loucura é loucura, não me repreenda. Eu amei demais.
— Eu também amei demais. Aliás, estou amando outra vez.
— Você, quando acorda, tem gente do lado. Mas, eu, quando durmo, é um sono abafado de uísque e vergonha, por nunca encontrar você. Nem que eu caminhasse de volta para casa, deixando as mentiras e os sonhos pra trás, tentando viver o real de um amor que se deu demais; nem que eu caminhasse às seis da manhã; nem que eu me cegasse pra ver o que é bom; nem que eu rastejasse até o Leblon, não iria encontrar. É você que eu mais quero. Por você eu espero. Ai, como é bom amar.
— Sim. Eu sei. Foi muito bom te amar. Mas, tive que dar um tempo. A gente já não tinha um único dia de paz e sossego.
— Que você sumiu, eu sei. Não preciso nem saber aonde você esconde sua imensa dor.
— Cansei de brigar, sabe?
— Por que sangrar o meu amor assim?
— Não se trata disso.
— Por que temer a minha fêmea, se a possuis como ninguém?
— A nossa história de amor foi linda, mas faz parte do passado. Não sei como dizer isso de uma forma menos piegas.
— Por que queimar minha fogueira e destruir a companheira? Não penses ter a vida inteira para esconder teu coração.
— Não tenho o que esconder. Estou apaixonada por outra pessoa.
— Não penso ter a vida inteira para guiar meu coração. Sei que a vida é passageira e o amor que eu tenho, não. Quero ofertar a minha outra face à dor. Deixa eu sonhar com a tua outra face, amor.
— Deus do céu…
— Nós somos as cobaias de Deus. Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório, um labirinto. Seja atropelado por esse trem da morte. Me sinto uma cobaia, um rato enorme nas mãos de Deus mulher, um Deus de saia.
— Não diga isso.
— Talvez seja uma provocação. Ou então, você nem pensa em mim. Não sei. A vida é mesmo assim, você feliz longe de mim.
— Ninguém apaga o que a gente viveu. Sou grata por isso.
— O grande escândalo sou eu aqui só. Dói em mim saber que a solidão existe e insiste no teu coração. Dói em mim sentir que a luz que guia o meu dia não te guia não. Todas as coisas lindas dessa vida eu sempre soube amar. Eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós.
— Não me sinto só nem por um instante. Eu já encontrei uma pessoa e espero, sinceramente, que você também volte a se apaixonar por alguém.
— Amor, meu grande amor…
— Eu espero ainda mais dessa vida.
— A vida é bela. Só nos resta viver.
— Só nos resta viver, minha querida amiga.
Paguei a conta, deixei gorjeta e caminhei na direção do mar. Apesar de incompleto e triste, o Rio de janeiro continuava lindo.