Morre o gênio que enxergava uma orquestra no cair da chuva e uma sinfonia no riso de uma criança

Morre o gênio que enxergava uma orquestra no cair da chuva e uma sinfonia no riso de uma criança

A água treme no alumínio, um vapor fino risca o ar. Um caderno aberto na mesa, as pautas esperando risco; um copo que devolve luz; um bule ainda morno. O chapéu guarda uma sombra na cadeira, o bigode cede ao calor. Um acordeão descansa encostado na parede. A cortina enruga, vento breve, cheiro de terra batida que chega de longe, Lagoa da Canoa ainda lateja nesse aço. Filho de sanfoneiro, menino albino que buscava a sombra, ele ergue os olhos; a casa inteira se inclina para ouvir. Desenha uma linha que não existia e, de repente, 1936 cabe inteiro na sala; a lembrança dos quatorze anos em Recife encosta no batente e espera a primeira nota.

Morreu no sábado, 13 de setembro de 2025, aos 89 anos, no Rio de Janeiro. A família comunicou; programas interromperam playlists; mensagens de voz chegaram com a respiração presa no começo das frases. Um pianista baixou a tampa do instrumento; no agreste, uma sanfona parou no meio do ensaio; num estúdio, o talkback ficou mudo. Em prateleiras discretas, um LP de Miles Davis girou baixinho; na parede, um cartaz de Montreux recebeu um olhar demorado. Sem inventário, as décadas couberam num único fôlego. O corpo seguirá o rito do adeus; a obra fica, acesa em salas, cozinhas, fones gastos, e o país se inclina para ouvir de novo o copo vibrar no ar.

No agreste, década de 1940, a sombra vale ouro. O menino, pele de vidro ao sol, aprende a medir a manhã pelo cheiro do café e pelo passo da água no açude. O acordeão do pai não é ornamento de sala; ganha pão, reza, brincadeira. Em Recife, meados dos anos 1950, rádios de auditório ainda lotam plateias; programas ao vivo pedem prumo e sangue frio. Ele chega com quatorze anos e a cidade lhe oferece duas escolas, o bar noturno que ensina a ler conversas, a cabine de transmissão que exige precisão. Do agreste ao litoral, a orelha alarga o país. Depois, quando o Rio e São Paulo chamam, não há abandono do Norte, há uma cartografia nova que se desenha na cabeça. Os estúdios pedem; as fitas magnetizam o que antes só existia no quintal. O corpo, que um dia buscou sombra para existir, encontra no teclado e no fole uma outra forma de abrigo, uma casa portátil que cabe dentro do peito.

A década vira; em meados dos 1960, as formações chegam e partem em ritmo de estação. Som Quatro experimenta o passo da metrópole, linhas que aprendem buzina e semáforo. Sambrasa Trio, com Airto Moreira e Humberto Clayber, deixa num único LP de 1965 um estudo aberto, uma passagem em meia-luz para quem escuta do corredor. Em seguida, Quarteto Novo: Airto em alerta, Heraldo do Monte encurtando distâncias com a viola de doze, Theo de Barros desenhando a harmonia, Hermeto soprando e teclando um Nordeste afinado ao compasso moderno. Com a televisão acesa, festivais pedem outro desenho; canções de auditório exigem banda com coluna. Arranjos nascidos entre ensaio e estrada viram trilha para muitos; sem manifesto, só partitura e fôlego, o bastante para que o costume ceda um passo e a música encontre chão mais largo.

Ano de 1971. Um disco, metade palco, metade sala de mixagem, costura dezembro de 1970 a tardes fechadas em estúdio. No miolo, duas peças de Hermeto, “Little church” e “Nem um talvez”, trocam sinais com a banda de Miles Davis; Airto Moreira atiça peles, o trompete abre corredores, teclas eletrizadas seguram o pulso. A capa propõe um mundo em espelho e o nome dele atravessa fronteiras sem alarde. Convites chegam, itinerários engrossam; ele permanece no banco, atento, perseguindo a nota até que aceite ficar.

Décadas sem concessão à pressa. O copo de vidro, o bule, as chaves na mão de um músico viram coro afinado; microfone perto, respiração contada, a plateia sustenta a postura para não quebrar o feitiço. Em oficinas e palcos, a instrução cabe em meia frase, tocar com atenção de quem segura água numa colher. Instrumentos nobres e utensílios de cozinha dividem o mesmo território; o piano oferece teto, o objeto comum deixa uma fresta. Quem sorri antes do som aprende respeito quando a melodia aparece inteira e antiga, a sala recolhe o riso e devolve silêncio atento. Falta registrar, num dia específico, o relato de quem viu o copo vibrar e guardou no bolso um pedaço de vidro imaginário; esse pequeno testemunho datado faria do parágrafo uma carta que ninguém conseguiria ler sem um nó na garganta.

Anos 1990, Brasil em recuperação de fôlego, cadernos espiral ainda reinam na mesa. Entre 1996 e 1997, ele acorda cedo e escreve, todos os dias, uma partitura que leva a data no alto, 1º de janeiro, 2 de janeiro, 3, até caber também o raro 29 de fevereiro. A ideia é simples e generosa: que cada pessoa encontre no próprio aniversário um lugar para encostar o ouvido. As páginas têm caligrafia inclinada, bilhetes curtos, uma brincadeira que vira instrução, um acorde que pede cuidado. Em muitas casas, mães colam a folha do dia na porta da geladeira; velhos sopram a vela com a partitura perto do prato; crianças guardam no estojo uma cópia dobrada. O relógio, em vez de empurrar, aponta trilhas. O tempo, enfim, deixa de ser ameaça e vira cumplicidade, um parceiro sentado à mesa com xícara morna e lápis apontado.

Hermeto Pascoal
Hermeto Pascoal (1936–2025), alagoano que fez do cotidiano uma partitura e da cozinha uma orquestra

Década de 1970, cheiro de vinil novo. Em 1973, “A Música Livre” descortina a sala, a melodia passa com pés descalços, uma célula rítmica discreta toma conta do espaço sem bater porta. Quatro anos depois, “Slaves Mass” segura o ar do estúdio, contrabaixos caminham levando notícia importante, metais desenham uma marcha íntima que não precisa levantar voz. Em 1980, “Cérebro Magnético” faz a cabeça do ouvinte dar uma volta a mais, motivo insistente que muda de cor no meio do caminho, e ninguém quer que acabe. Décadas passam, e “Natureza Universal” convoca big band, naipes em leque, um gesto de mão reajusta a respiração coletiva sem brado. Esses discos não ficam em prateleira: atravessam cozinhas, rádios noturnos, fitas cassete anotadas a lápis; transformam auditórios em sala de casa e salas de casa em auditório. Quem os ouve reconhece o truque honesto do ofício: dar nome às horas para que elas não nos escapem.

Ano de 1954, ele e Ilza da Silva assinam uma vida em comum, seis nomes que enchem a mesa: Jorge, Fábio, Flávia, Fátima, Fabiula, Flávio. A casa aprende a respirar no compasso do acorde; panela no fogo, partitura no aparador. Em 2000, a doença abre um buraco na rotina e o corpo dela não volta; ficam xícaras que ninguém mais usa, uma cadeira que ninguém puxa, dedicatórias que insistem em escrever o nome dela no rodapé das noites. A partir de 2003, entra Aline Morena, parceria de palco e de afeto; o Sul recebe temporadas que cheiram a chuva fria, Curitiba com suas ruas compridas e a vizinhança de Santa Felicidade; violas encostadas, vozes aquecendo a manhã, visitas que chegam com mala única e ficam tempo suficiente para a música encontrar lugar. Mais tarde, no Rio, a oficina doméstica se amplia, estudantes tocam baixo e saem sorrindo com calo nos dedos; não há protocolo, há uma mesa comprida, café passado, o riso de quem aprende; o ensaio vira conversa e a conversa vira arranjo; a família esticada pelo mundo volta a existir toda noite no primeiro acorde.

O rótulo de excêntrico cola fácil quando o artista recusa prateleiras. Programadores de rádio pedem faixas curtas, três minutos redondos; ele prefere a curva que demora, a pausa que respira, compassos ímpares que pedem coluna, modulações repentinas que mudam a cor da sala. O pedido de repertório dócil chega com sorriso; a resposta é um arranjo que muda de humor no meio, um naipe que cresce e encolhe, um solo que deixa a mão tremer antes de pousar. Choro, baião, samba, jazz, folclores não entram como mistura vistosa, entram como continuação de um rio antigo; o piano abre teto, a sanfona segura a parede, as flautas desenham portas, a mão marca o pulso sem perder ternura. O que o menino ouviu no quintal, água, vento, trabalho, não vira lembrança distante; vira gramática íntima, instrumento de bolso. Quem pede rótulo ganha silêncio; quem aceita ouvir recebe a casa inteira acesa, e nesse clarão cabe o país, cabe o luto, cabe a alegria de estar vivo por mais um compasso.

Anos de estrada deixam marcas nas mãos. Antes do show, fita crepe nomeia cabos, o afinador repousa no banco do piano, a régua da noite será o olhar dele. A cena repete um rito: contagem com a cabeça, mão que corta o ar para segurar dinâmica, dedos que pedem pausa, sobrancelha que indica o ataque do sopro. Não há truque de atmosfera, há atenção que recolhe a sala inteira e redistribui. Em teatros municipais, em praças abertas, em clubes que cheiram a madeira antiga, a banda aprende a ler esse idioma breve, onde um gesto vale uma frase e uma curva de mão reescreve o compasso. Nos bastidores, partituras manuscritas com setas, tinta fresca, pequenos círculos em volta de notas que ele quer proteger; no palco, improvisos que parecem cartas preparadas desde manhã. Há noites em que a plateia entende sem ninguém explicar: a música pede disponibilidade, pede corpo inteiro; quando termina, por um segundo, ninguém respira, e a energia acumulada fica no ar como uma promessa que ainda não se desfez.

Os troféus chegam em três anos que soam como sinos. Em 2018, o anúncio de Melhor Álbum de Jazz Latino acende o nome dele em voz cerimoniosa; em 2019, Raízes em Língua Portuguesa reconhece um Brasil que dança com os pés no chão; em 2024, outro chamado para o jazz latino confirma a permanência. O metal frio do prêmio pesa, mas não pesa mais que as cartas que ele continua a escrever. Nesse mesmo 2024, “Pra Você, Ilza” oferece treze temas como quem pousa a mão sobre uma fotografia e não tira. Pianos em meia-luz, flautas que lembram corredores, cozinhas, quintais, a dedicatória que não pediu espetáculo, pediu cuidado. Enquanto isso, nas casas, gente interrompe a rotina para ouvir a faixa de abertura com as luzes baixas; alguém encosta o ouvido no alto-falante e acha o nome de quem partiu. Não há véu dramático, há ternura firme. E a notícia de prêmio, lida ao microfone num auditório distante, retorna para dentro de apartamentos pequenos, onde um copo vibra em cima da mesa e a música encosta no peito sem pedir licença.

Fim de tarde em tantas cidades; teatros de madeira antiga, clubes de mesa colada, praças com luz de lâmpada amarela. Ao longo de seis décadas de estrada, ele encerra noites assim, mão esquerda no ostinato que empurra, mão direita desenhando alto a melodia, a flauta à espera no colo, o copo à beira do teclado pronto para vibrar. Não há protocolo, há atenção compartilhada. Crianças no colo de pais, estudantes com caderno no joelho, senhoras que reconhecem o acorde porque já cozinharam nesse tom. É música em estado de casa aberta. A cena se repete do Nordeste ao Sul, da sala pequena ao festival com cadeiras numeradas; o gesto final sempre cabe no corpo todo. O relógio deixa de mandar; ninguém olha para o visor. E quando o vidro vibra junto, uma comunidade se forma por segundos, gente que talvez nunca mais se encontre e, ainda assim, guarda a mesma lembrança na mesma prateleira invisível da cabeça.

Resta o que sustenta. Não só discos e partituras, mas o modo de trabalhar o dia até ele cantar. Em conservatórios, escolas, rodas de bairro, bandas jovens copiam uma linha dele para aprender respiração; arranjadores anotam uma curva de harmonia que abriu caminho; professores contam a história de um músico que tratava utensílios como instrumentos e instrumentos como extensão da cozinha. A generosidade não pede anúncio, deixa rastro. A morte organiza o luto, a vida organizada por ele segue em acervos pessoais, em estantes de salas simples, em arquivos digitais cheios de versões, em gravações de ensaio salvas sem capricho e, por isso mesmo, insubstituíveis. Há quem acorde mais cedo para ouvir uma faixa antes de trabalhar; há quem feche os olhos no ônibus e ache o país inteiro de sons que ele ordenou com carinho e firmeza. Em cozinhas onde o vapor ainda risca o ar, alguém pega uma panela, outra pessoa encontra uma flauta, outra acorda o acordeão adormecido, e a casa cresce um pouco. Não para caber saudade, para caber futuro.

Revista Bula

A Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura, comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês, consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de publicações próprias, com títulos de ficção e não ficção distribuídos em formato digital e impresso.