Moscou: lâmpada tímida no fio gasto, pão dividido em quatro, o corredor que range. Ela se inclina sobre a mesa, caderno aberto, grafite curto, faíscas no frio. A casa cabe numa cozinha de pratos lascados, um fogareiro teimoso, cartas enviadas a endereços que mudam. Nomes de rios e ruas, idiomas que entram pela janela. Uma mala encostada. Vizinhos não perguntam, paredes escutam. O dia exige explicação; ela prefere corte e ritmo, mede o silêncio pelo que se rasga no verso. A frase segura o peso do tempo.
Marina Tsvetáieva nasce em Moscou, 1892, entre quadros e ideias; o pai, Ivan Tsvetáiev, prepara o terreno do futuro Museu de Belas-Artes, inaugurado em 1912, a mãe, Maria, cobra do piano a disciplina que modela o ouvido. A infância cruza a revolta de 1905, a doença e a morte da mãe em 1906; em 1913, morre o pai. Moscou cresce em febre industrial, o Império range, a menina aprende que leitura e música organizam o dia. Onde outras crianças guardam brinquedos, ela empilha poemas. Precocidade sem pose, trabalho no escuro, fome de precisão.
Chega 1912; casamento com Sergei Efron, cadete. No mesmo ano nasce Ariadna, Alya; em 1917, Irina. Em 1914 a Europa entra em guerra; 1917 derruba dois governos; entre 1918 e 1921 a fome da Guerra Civil transforma fila em geografia, o racionamento vira modo de sobrevivência. Em 1919, exausta e sem meios, Marina coloca as duas filhas num abrigo estatal; retira Alya ao primeiro sinal de fraqueza; Irina morre de fome em 1920. Esse corte dispensa legenda; ficam as páginas. O século mostra os dentes; ela responde em tinta, uma música de cortes que não suaviza.
Entre 1914 e 1916, Marina encontra Párnok e aciona o laboratório do poema. Guerra nas manchetes, vida comprimida nas cozinhas; no papel, duas dicções se tocam e faíscam. Dali saem poemas de desejo ditos com precisão de bisturi, rimas que testam o limite do corpo e da ética privada. O ciclo amoroso termina; o efeito estético permanece. Em dias de pouco ar, um verso desse conjunto ainda segura o passo.
Em 1921, a Nova Política Econômica abre pequenas brechas; a sobrevivência continua incerta. Em 1922 começa o exílio: Berlim em hiperinflação, depois Praga com suas redes de apoio aos emigrados, por fim Paris, em meados da década. Em Praga, 1925, nasce o caçula, Georgy (Mur). Entre malas e vistos, Tsvetáieva transforma a correspondência em país portátil: com Boris Pasternak, páginas em alta tensão; para Rainer Maria Rilke, perguntas e admiração que ainda alcançam 1926, pouco antes da morte dele, cartas que guardam o calor de um verão triangular.

Paris, 1925-1939: pensões de corredor estreito, carvão contado, endereços que mudam com o aluguel. A crise de 1929 cai sobre os cafés; as revistas encolhem páginas; a diáspora russa se reparte entre livrarias de empréstimo, jornais efêmeros, palcos pequenos. O francês bate à porta, o russo segura o ritmo do pensamento. Marina traduz por peça, envia originais, lê para plateias magras, reescreve até a madrugada. Da cidade extrai matéria seca, linhas cortadas rente, pausas que mantêm o corpo de pé. Paris alimenta com pouco; cobra tudo.
Sergei Efron, antigo oficial branco, enreda-se em redes clandestinas ligadas a Moscou; 1937 traz investigações e fugas; ele retorna à União Soviética naquele ano. O cenário internacional fecha mais uma porta em 1939 com o pacto germano-soviético; a guerra europeia rosna no limite. No mesmo 1939, Marina deixa Paris com Mur e cruza de volta a um país que mudou de rosto. Alya é presa em agosto; o retorno promete casa e mesa e entrega corredores com portas entreabertas. Em setembro de 1941, Efron é fuzilado; parte da bibliografia situa sua morte no massacre de Medvedev, na região de Oriol. Outras fontes referem Lubianka como local; por prudência, convém anotar a divergência documental.
Moscou, fim de 1939: apartamentos improvisados, filas, interrogatórios. Marina pula de quarto em quarto, sem direito de escolha. Para o pão de cada dia, versiona autores com paciência e febre; os próprios versos dormem em gavetas que não podem ser abertas em voz alta. A matéria viva não cede. A cidade aperta, a frase resiste.
Em 22 de junho de 1941 a Alemanha invade a União Soviética; sirenes, trilhos lotados, evacuações para o interior. Tsvetáieva embarca com Mur e chega a Elábuga, Tartaristão. Quartos de passagem, filas por cupons, promessas de trabalho que não se confirmam; pede emprego de cozinheira, aceita o que houver. A poesia não compra leite, não aquece fogão. Em 31 de agosto de 1941, ela amarra a corda no sótão. O que se sabe daquele dia e das cartas derradeiras circula há décadas; a data, o gesto e a cidade se tornaram fixos na cronologia mínima da literatura do século.
Seria lenda de martírio se a obra não morasse na costura do dia. O que ela escreve evita monumentos; encontra força na faca que corta maçã, no casaco molhado na cadeira, na prataria vendida para pagar aluguel. A lírica muda de andamento com agilidade rara, salta do sublime ao sal, troca o cenário épico pelas quinas da mesa. A voz organiza imagens até faísca. A metáfora diz com precisão o que a prosa deixaria pálido.
Política, em Tsvetáieva, não vira palco separado. A escrita acontece por dentro de 1917 e 1921, atravessa 1937 a 1941; datas que puxam a frase para a rua. Denúncia evita pose; vira cadência, escolha de pronome, elipse que vibra por trás do verso. Em cada poema, risco assumido por necessidade. Guerra é vizinha barulhenta, botas na escada, envelope carimbado que muda destinos. A rima, ora dura, ora flexível, guarda a tensão e amplia o alcance da experiência com economia de elementos.
A obra resiste a etiquetas. Tentaram encostar no modernismo exilado; tentaram o arquivo do intimismo; as gavetas não comportam o tamanho. Tsvetáieva afia a própria gramática, inclina cortes e acentos súbitos, faz o leitor tropeçar em enjambements por fidelidade ao pulso da experiência. Emoção trabalhada sem perda de calor; imagens que mostram o cotidiano com pólvora contida. O vivido passa para a página sem aparato, com disciplina de ouvido.
Sua prosa pede espaço. Cartas e ensaios tratam a tradição como assunto de família. Pushkin aparece com devoção rigorosa; Pasternak recebe perguntas que iluminam corredores; Rilke, saudado em 1926, fica como afinidade de altura, registro que o volume de cartas ajuda a recompor com clareza de teatro epistolar.
No íntimo, a vida ferve em ritmo de época. Maternidade com ternura e feridas, amores arriscados, o idioma próprio em estado de combate. Em muitos momentos, a poeta fica comprimida entre o cuidado dos seus e o chamado do verso. O mundo cobra escolhas; ela paga com descompasso e brilho, às vezes com culpa que ganha corpo no papel.
Depois de 1941, a história fecha mais um anel. Mur cai no front em 1944, uma cruz num cemitério militar; Alya atravessa prisões e saídas até reassentar a memória. A circulação de Tsvetáieva acontece aos pedaços, em clandestino, depois em editoras de emigrados; só mais tarde começa a alcançar leitores na Rússia com menos cortes. O país troca de uniforme; a obra permanece.
Elábuga, 31 de agosto de 1941: um sótão fechado, uma corda; o século recolhe o fôlego. Em outra cena, de agora, um leitor inclina o rosto sobre a página e encontra o passo certo entre duas palavras. A biografia corta, a obra sustenta. Tsvetáieva guardou um idioma interior e pagou o preço inteiro. O que ficou atravessa décadas sem pedir permissão; basta uma mesa e alguma luz para que a cadência volte.