Ela pagou o preço do escândalo. Morreu discretamente. Virou lenda. Mudou a poesia brasileira

Ela pagou o preço do escândalo. Morreu discretamente. Virou lenda. Mudou a poesia brasileira

1930. O preço do café desaba; a Revolução leva Getúlio Vargas ao centro do poder; o rádio costura vozes entre vilas e capitais; locomotivas cortam as tardes em lâminas breves; fábricas crescem nas bordas de São Paulo. Na cidade, poeira de colheita e graxa de estação grudam no ladrilho; sinos e apitos dividem o ar com manchetes urgentes. O calendário público muda de passo; uma casa aprende a ouvir esse pulso e prepara mesa, papel e quietude.

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 21 de abril daquele ano, em Jaú, no interior paulista. O mapa doméstico se move com a mesma instabilidade do país. O pai, Apolônio, alterna brilho e vertigem; o diagnóstico de doença mental impõe sustos e ternuras abruptas. A mãe, Bedecilda, parte cedo. A criança entende que amor e ausência podem dividir a mesma mesa e que a mente, quando se parte, deixa um traço que exige cuidado.

Além das janelas, o interior ajusta contas com a crise do café; armazéns contam sacas com parcimônia; a ferrovia encurta distâncias; aparelhos de válvula aproximam vozes que nunca se viram. Professores recitam datas; procissões cruzam a praça; comícios improvisados misturam promessas e medo. A menina recolhe nos cadernos um modo de permanecer inteira dentro da mudança e pede à língua que carregue dor e beleza com o mesmo peso.

Quando a adolescência chega, São Paulo oferece corredores longos e vozes que disputam razão. O país acelera a modernização enquanto autoritarismos se insinuam; o Estado pede disciplina, a família cobra silêncio, a Igreja traça limites. Hilda busca exatidão emocional antes de qualquer consolo. Cada leitura amplia a casa; cada página, rigor. O país altera a cadência; a jovem observa, estuda, escreve, persiste; aprende que a precisão salva.

Na São Paulo de meados do século, a juventude atravessa pátios da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco sob lâmpadas amarelas e campainhas que chamam, de hora em hora, para outra discussão. A cidade cresce em arranha-céus, bondes disputam trilhos com ônibus, tipografias acordam antes do sol, migrantes chegam com malas de papelão e esperança rascunhada. Hilda senta na biblioteca, abre cadernos com letra firme e leva para a mesa uma pergunta que a aula não alcança: de que modo a língua pode conter aquilo que a vida espalha sem ordem. Publica cedo, mas a sensação de destino não se mede pelo dia de lançamento; pulsa na vigilância da frase, na escuta do que se parte por dentro. O país anuncia metas grandiosas e disciplina militarizada; projetos correm nos cartazes de propaganda; discursos prometem futuro brilhante. Ela afasta o ouvido do slogan e escolhe o detalhe, a inflexão, o intervalo que devolve peso humano às palavras. O corpo pede trabalho; a escrita responde com páginas que respiram fundo.

Em 1966, Hilda instala-se na Casa do Sol, nos arredores de Campinas. A casa térrea, de janelas largas, abre para um pátio de luz rasa; há pomar, há cães, há uma mesa que suportará décadas de paciência obstinada. Ali, a rotina ganha ritmo exato e severo: manhãs atentas, tardes de revisão, noites em que amigos leem em voz alta e a autora recolhe de cada voz um eco necessário. Na cidade, portas perdem frestas; bilhetes atravessam redações; peças são recolhidas antes do terceiro ato; canções chegam ao rádio com sílabas interrompidas; editores refazem catálogos na madrugada. Em dezembro de 1968, o Ato Institucional 5 impõe censura mais severa. Jornais passam a indicar os cortes na própria página; O Estado de S. Paulo publica versos de Camões no lugar do que foi vetado; outros preenchem os vazios com receitas. A pressão externa exige coragem interna. Hilda responde com uma língua que não recua da matéria viva: desejo e culpa, fé e pensamento, carne e responsabilidade. A casa torna-se lugar de trabalho rigoroso e de ternura cotidiana; nela, a literatura encontra chão, e o chão oferece à literatura o peso que faltava. Entre jacarandás, anotações, café coado e cadernos empilhados, ela descobre que a precisão emocional tem temperatura, e que a verdade, em tom contido, comove até os que fingem não ouvir.

No ponto mais íntimo desta escrita lateja uma pergunta: que destino dar à fome de absoluto quando a pele pede resposta agora. A prosa traça um circuito próprio, capaz de abrir clareiras onde fé e desejo dividem a mesma linha. Sem recorrer a títulos, sua ficção convoca vozes que descem aos andares de si, tocam porões de dor, desmontam encenações de poder e transformam impulso em pensamento vivo. Enquanto televisores derramam luz em salas recém-compradas, sacristias recomendam recato, consultórios tratam do prazer em sussurro, delegacias de costumes rondam boates, carimbos da censura selam páginas e o país tenta domesticar o corpo por decreto. Hilda escreve dentro desse clima de vigilância e desejo e decide que a língua suporte, na mesma frase, culpa e graça. Os jornais pedem escândalo; a página escolhe exatidão. Quando a frase se fecha, o leitor encontra um espelho que não absolve e, sem notar, seca os olhos.

Hilda Hist
Isolou-se para escrever. Pagou o preço do escândalo. Morreu discretamente

Os espectadores chegam pela metade: salas de estar com tapetes gastos, antenas de espinha-de-peixe nos telhados, o domingo entregue à mesma tela de madeira que acende a casa inteira. Em 1979, no programa Fantástico, da Rede Globo, uma reportagem entra na Casa do Sol; Hilda explica experiências de transcomunicação que vinha realizando desde meados da década, com gravador de fita e rádio de válvula, tentando captar vozes, e apresenta as fitas nas quais dizia tê-las registrado. Na segunda-feira, o assunto cruza repartições, padarias, corredores de escolas. Parte da crítica corre para rótulos ligeiros. Na Casa do Sol, ela volta à mesa; mede o fôlego com paciência breve; afina o ouvido para o tempo do país. No fim daquela década, o cansaço do regime já se deixa ver nos cartazes desbotados e nas conversas cochichadas; ofícios de classificação cortam filmes e reescrevem sinopses; capas são recolhidas; recitais terminam antes do último verso; pequenas editoras mudam tiragens de última hora; clubes de leitura se reúnem em salas discretas e passam adiante livros marcados a lápis. A sua política atravessa a frase, recusa moralismos prontos e coloca, dentro da mesma sintaxe, o sagrado e a carne.

Na vida afetiva, Dante Casarini é o companheiro constante: mãos de escultor cheias de pó, olhar que pesa volumes e alivia a tarde. Há riso que desafoga o ar, discussões que terminam em silêncio que assenta, partilha de espaço e de cuidado. Amigos tocam a campainha em horários improváveis; alguns ficam semanas; cadeiras arrastadas para leituras em voz alta, panelas no fogo, folhas grampeadas sobre a toalha, bilhetes presos com clipes, o portão rangendo na madrugada. Também existem dias de contas miúdas, de correções que rasuram o papel, de desalento dobrado e guardado. Hilda conversa, cozinha, desaparece pelo corredor, volta com os dedos manchados de grafite e café. Quem divide o teto aprende depressa: ambição estética cobra vigília, cobra renúncia e cobra delicadeza diária.

Ao longo dos anos, o reconhecimento chega em parcelas. A saúde passa a cobrar juros silenciosos. Há dias em que a fala tropeça, há tardes de esquecimento breve, há noites em que a memória abre clareiras e logo volta a fechar. Ainda assim, a mão não cede. Janeiro de 2004 traz o verão alto sobre Campinas: chuva grossa, telhados acesos de calor, o jardim devolvendo um vapor doce. No meio da estação, a queda. O corpo toca o chão com um som que ninguém esquece. Telefone que toca, sirene que corta a água das ruas, o caminho até o Hospital das Clínicas da Unicamp. A sala branca expõe sem piedade. Raios X. A palavra fratura dita com calma. Cirurgia marcada; parafusos, placas, a promessa de fisioterapia como volta ao passo. No corredor, amigos seguram o tempo com café em copos de plástico e livros abertos na mesma página.

Os dias seguintes obedecem a um compasso implacável: febre que vai e volta, antibióticos que descem por veias finas, enfermeiras virando lençóis, respiradores calibrados, janelas abertas para um céu de tempestade curta. A dor evita espetáculo; ela persiste. Hilda escuta vozes queridas lendo baixinho trechos que a acompanharam por décadas; reconhece, em alguns instantes, uma frase; fecha os olhos; recupera fôlego; perde de novo. Do lado de fora, o Brasil recomeça o ano com matrículas, repartições em meio expediente, aeroportos cheios, jornais atentos às pequenas notícias. Dentro do quarto, os relógios não avançam. A infecção retém o corpo. Médicos discutem condutas em tom contido junto à porta. Uma noite inteira pesa sobre máquinas acesas.

Na madrugada de 4 de fevereiro de 2004, a respiração encurta até quase desaparecer; o monitor sustenta uma linha por instantes e depois entrega o silêncio. O aviso atravessa corredores, atinge telefones, entra nas anotações de plantão. Campinas amanhece sob um calor pesado. Na Casa do Sol, os cães farejam o ar e pressentem mudança no terreno. Um caixão simples retorna ao endereço que foi oficina e abrigo. Amigos chegam em carros que desenham trilhos de pó na estrada; vizinhos entram com flores do próprio quintal; leitores trazem páginas marcadas a lápis. Há quem reze, há quem leia, há quem apenas encoste a mão na madeira e feche os olhos. O pátio recebe um sol branco. O adeus acontece sem microfones e sem horário nobre, com o peso real que a vida teve.

Nos dias seguintes, o Brasil registra a notícia com atraso e pudor. Jornais publicam obituários discretos; programas de cultura relembram conversas; redatores procuram adjetivos que não diminuam; professores reorganizam listas de leitura; livrarias montam mesas de entrada com lombadas que passaram anos fora de vista. Em editoras, prazos mudam, contratos avançam, caixas antigas são reabertas. Tradutores pedem exemplares anotados; bibliotecas reservam salas para encontros; clubes de leitura se multiplicam em cidades distantes. Leitores muito jovens batem ao portão da Casa do Sol com cadernos e lápis. A guarda da memória vira tarefa diária. A ausência passa a trabalhar a presença. O que antes circulava em regime de culto encontra estrada mais larga, movida por uma razão simples: o que Hilda ergueu pede fôlego, atenção e coragem, e quem atravessa essa porta demora a sair, porque ali descobre um conjunto de páginas que ajusta a altura do país e deixa o coração com lágrimas sem aviso.

O que sustenta esta escrita é um pulso íntimo que dá timbre e passo. Feridas de origem ensinaram vigilância e delicadeza; por isso as vozes podem delirar sem perder nitidez, e o vazio doméstico aparece como ar frio entrando pelas juntas da madeira. O amor-próprio alterna entrega e recuo com medida rigorosa; a fé, áspera, impõe responsabilidade; o desejo abre território de atenção extrema. A língua recusa atalhos, mastiga fórmulas gastas até que não sobrem bordas reconhecíveis. Há períodos longos em vaivém grave, e sentenças breves que estalam e deixam sinal de faca. Essa alternância dá à prosa a cadência de quem pisa terreno movediço sem amparo e, ainda assim, avança.

Também há país nessas páginas. Da noite compacta do regime à manhã cautelosa da Constituição de 1988, das ruas cheias nas Diretas Já às salas de aula que recuperam autoras esquecidas, o cenário muda de feição enquanto debates sobre corpo, culpa e liberdade saem do sussurro para a conversa aberta. Igrejas negociam limites, consultórios reorganizam vocabulários, editoras pequenas teimam em imprimir o que catálogos maiores evitam, jornais voltam a discutir ideias em páginas retomadas. Nessa mudança lenta, a recepção de Hilda atravessa rejeições rápidas, adesões discretas e fidelidades que amadurecem no tempo. Ler a autora hoje exige ritmo mais calmo e coragem: o leitor percebe que beleza e dor sentam-se à mesma mesa, que a alegria traz cicatriz, que a esperança trabalha em silêncio, e dessa combinação nasce uma claridade que não desbota.

Na Casa do Sol, o relógio abranda. A mesa de madeira escurecida guarda sulcos e anéis d’água; nas prateleiras, margens riscadas conversam entre si; retratos sóbrios vigiam a sala. O visitante intui, ainda com a mão na maçaneta, que a travessia decisiva ocorreu para dentro: uma viagem longa pela língua até alcançar um território de verdade paga a preço alto. Aqui, biografia deixa de ser sinopse e vira gesto: décadas empenhadas em dar contorno nítido ao que o Brasil preferiu sussurrar. Esse legado devolve responsabilidade a quem lê, convoca o corpo inteiro, recusa atalhos, pede fôlego e oferece uma nitidez que persegue o leitor muito depois da última página.

Quando a derradeira linha repousa, uma música sobe do papel: cordas ásperas, metais contidos, um tambor discreto marcando o compasso do peito. A leitura termina e o mundo ajusta a própria altura. Há quem saia com pálpebras marejadas, por reconhecimento. Há quem volte para casa com uma coragem recém-acesa, pronta para sustentar o peso das horas sem maquiar nada. Essa voz continua escrevendo dentro do leitor, amplia o quarto por dentro, desloca paredes, deixa no ar um brilho baixo, que não precisa gritar e, ainda assim, carrega o arrepio inteiro.

Revista Bula

A Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura, comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês, consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de publicações próprias, com títulos de ficção e não ficção distribuídos em formato digital e impresso.