Havemos de matar em nós a raiz da tristeza e não a ela sucumbir

Havemos de matar em nós a raiz da tristeza e não a ela sucumbir

Somos treinados para cultivar, desde cedo, falácias que nos parecem naturais. De tão exauridas e escalpeladas, vão-se construindo “desverdades”, abstrações distorcidas da realidade. Uma delas sem dúvida é a ideia de que morte e vida são palavras antônimas: preto e branco; beleza e feiura… vida e morte, certo? Bem, qualquer definição biológica desmente essa doidice: o conceito de vida só existe porque assim o faz o da morte, como um desdobramento, não como um antônimo! Há certa cumplicidade entre as duas, algo de conivência, como duas irmãs.

Mesmo assim, há vezes em que se pensa na morte e ela soa ridícula. Que coisa mais imbecil é arrancar pela raiz tudo o que deu um trabalho enorme para ser erguido! Todos os frágeis castelos de sonho abaixo, todas as histórias e esperanças, tudo jogado fora! Mas há momentos de maior lucidez e plenitude em que os feitos — todos eles, do mais singelo ao mais retumbante — só parecem fazer sentido porque um dia haveremos de ser pó. Ninguém seria grande se vivesse para sempre. A consagração da vida só se faz na morte. É nessa hora de redenção que não poucas almas escolhem antecipá-la. Os suicidas não são feios, fracos ou estúpidos. São ansiosos pelo fim da estrada, seja por não lhe suportarem as agruras, seja por não lhe enxergarem sentido algum. De toda forma, lançam-se à morte como quem acha a chave das algemas.

Há certo medo de se falar em suicídio, como se isso fosse estimular quem está por um fio. Talvez, não sei. A verdade é que falta a naturalização da morte como um evento cotidiano: se reparar bem, morrer — todo dia, sempre e com coragem! — é simplesmente necessário. Só que é preciso escolher com calma quem vai para o abate, como um cirurgião que escolhe a parte do órgão a ser arrancada com a pinça. Há de morrer dentro de nós quem ousa minar as energias: o medo, a preguiça, o tédio, o descrédito e, sobretudo, a indiferença. É fundamental que as forças definhadoras de nossos braços e pernas sejam estranguladas, possibilitando-nos caminhar sobre passos trêmulos, porém obstinados. Haveremos de ser matadores de nós mesmos, arrancadores de ervas daninhas, combatentes da escuridão que vez ou outra tende a esticar um véu negro sobre nossos olhos.

Mas o que é feito no lugar? Teima-se em sufocar o pássaro azul. Matamos a parte errada habitante do peito com uma naturalidade estranhíssima. Talvez os que flertem com a morte prematura tenham, antes de tudo, deixado esvanecer a fatia mais primitiva da vida à qual Bukowski se refere: “há um pássaro azul em meu peito, que quer sair, mas sou duro demais com ele, eu digo, fique aí, Quer acabar comigo?” E então esmagamos a cabecinha esperançosa contra a parede até restar só um coração de concreto.

Estamos mais intolerantes, menos esperançosos, com o saco mais cheio que o normal. Quem há de condenar aqueles que encheram a paciência disso tudo? Condenação não deve haver, mas fica uma pena enorme. Morrer prematuramente causa pena porque encerra a música no meio, colocam-se os convidados para ir embora. E fica a grande certeza de que tudo poderia ter sido diferente se se tivesse permitido ao pássaro azul uma volta por aí. Ele é que poderia encontrar o sentido, a bossa, os porquês. Esse lado cheio de fé guarda uma intensa voracidade pela superação da escuridão, desenvolve um olhar de mariposa pela luz e não de peixe marinho vivente das profundezas de águas salgadas.

Quanto mais modernos e tecnológicos nos tornamos, mais pássaros ficam sem espaço. Vivemos nos tempos em que é meio ridículo ser sonhador, desejar um mundo diferente, render-se à quimera da paz mundial. O mundo tem se tornado mais e mais denotativo. Pode parecer discurso de miss, mas perder essa essência azul nos torna inumanos, nos mata sorrateiramente. São essas forças escusas que precisam ser mortas dentro de nossas almas e não a própria alma! Matar dentro de si cada uma dessas escuridões é a única possibilidade de viver bem para que morte e vida sejam irmãs.

Não sei bem aonde iríamos não fosse a certeza da morte. Talvez nos comportássemos com a expertise de sacos de batatas, habitando ainda hoje cavernas pré-históricas. Para que pressa de criar a luz, de ser a própria luz, quando se tem a eternidade? A ideia da morte é, antes de tudo, a certeza de que haverá vida na vida. Viver exige certa urgência, afinal. Apressá-la, porém, é negar sua própria magnitude. Havemos de matar em nós a raiz da inquietação e não a ela sucumbir.