Quando a última livraria fechou, a cidade se despediu de si mesma

Quando a última livraria fechou, a cidade se despediu de si mesma

Quando a última livraria fecha, a cidade ouve o próprio eco e aprende o peso do silêncio. Numa manhã de julho de 2025, um aviso no vidro anunciou o fim: a livraria fundada em 1972 chegava ao derradeiro fôlego depois de cinquenta e três anos de balcão.. O sol entrava raso, atravessava o pó suspenso e riscava no chão sombras alongadas de estantes rareadas. Numa cidade de pouco mais de trinta mil habitantes, onde a semana ainda se mede por feira, missa e pelo barulho das carrocerias que voltam da roça, cada objeto parecia despedida. Sobre o balcão, um livro-caixa de capa gasta guardava nomes a lápis e datas que diziam mais do que números; ao lado, recibos apagados, um carimbo gasto, um barbante que sobrava. Lá fora, a praça seguia no mesmo compasso; aqui dentro, um cliente entrou, não perguntou preço; pediu apenas um minuto. E a porta, antes de fechar, pareceu aprender o peso da própria palavra.

Ao longo de cinco décadas, a livraria mudou de pele sem trocar de endereço. No fim dos anos 70, pintou à mão o letreiro; nos 80, chegou a primeira copiadora, cheiro de plástico aquecido; nos 90, contact sobre capas enquanto o dinheiro mudava de nome e as etiquetas ganhavam código de barras. No começo dos 2000, veio o terminal de cartão, a nota fiscal eletrônica, o catálogo saiu do fichário de metal para a planilha impressa; orientação deixou de ser brinde e virou serviço. A vitrine sempre falou a língua da praça: poeira de safra pousando sobre lombadas, aviso de feira enfiado no canto, um manual técnico ao lado de um livro de contos. Quando a internet entrou pela porta, a casa explicou como grifar sem ferir, como localizar um capítulo, como chegar ao miolo de um assunto. Em cada virada econômica, era o atendimento que amortecia a notícia; e, enquanto lá fora o rumor mudava de assunto, ali dentro ler seguia sendo o modo mais antigo de a cidade conversar consigo.

No princípio, a livraria também era mesa de pedidos e balcão de recados. O catálogo datilografado abria em duas argolas; o balconista marcava a grafite o que viria na mala postal da madrugada. Ao fundo, um aparelho de telex batia seu tinir metálico: rolo de papel contínuo, letras de impacto, telegramas anunciando nascimentos, urgências, ausências. Quem precisava enviar mensagem ditava as palavras ali mesmo, conferia o endereço, esperava a fita correr. Entre uma xérox que salvava trabalhos escolares e uma chamada com chiado para a distribuidora da capital, a loja costurava as miudezas da cidade sem sair da praça.

Os anos seguintes exigiram outro fôlego. Armazéns sem vitrine e fretes invisíveis passaram a vender abaixo do preço de compra; um carrinho sem rosto levou embora o gesto de perguntar. A livraria, porém, não trocou a língua por cálculo: manteve o conselho dito devagar, a mão que sugere a porta de entrada, o cuidado de oferecer caminho a quem ainda não sabe por onde começar. Mesmo depois que o caixa deixou de fechar, virou vigília: gente que fecha tarde, paga uma fatura com atraso, recusa podar um catálogo porque o número ordena. O comércio cedeu lugar a uma forma de resistência, guardar um espaço físico para a leitura como quem guarda água em tempo de seca; ali o amor aos livros não era figura de retórica, era o que, por mais tempo do que parecia possível, manteve a porta aberta.

Quando as ruas esvaziaram, a fita no vidro cruzou em X e o cheiro adocicado do álcool ocupou o lugar do café no balcão. Pedidos viraram áudios entrecortados, motoboys recolhiam embrulhos na grade, nomes escritos a caneta no verso de recibos antigos. No primeiro mês houve mutirão: vales, coletas, gente oferecendo o frete; no terceiro, o boleto venceu com a mesma pontualidade de sempre. A casa nunca viveu de campeões de venda: viveu de cadernos, grampos, literatura de fôlego; insuficiente para carregar o aluguel sozinha. Reabriu depauperada: clarões nas estantes, etiquetas com preço antigo, mais eco entre passos; a leitura ficou com voz baixa demais para disputar a rua.

Ser a última abre um luto que não se encerra com a chave; fica no ar como pó de calçada. Numa cidade que aprendeu a medir a tarde pelo ronco dos motores, uma livraria foi menos comércio que pacto de vizinhança, promessa dita em voz baixa. Ali se carimbavam dedicatórias de formatura sob a lâmpada do balcão; ali um cartaz manuscrito anunciava reforço escolar, outro pedia voluntários para a festa da praça; ali um folheto grampeado de autor local dividia espaço com o calendário da cooperativa; ali um idoso ditava, com paciência, o bilhete que não queria errar. O mural de cortiça segurava avisos de procura-se, aulas de violão, um pedido de sangue; a campainha miúda fazia o papel de sino quando alguém atravessava o vento sem sombra. Na gaveta, moedas contadas; sobre a madeira, nomes completos escritos devagar, porque um nome pede respeito. Entre a vitrine e o fundo estreito, formou-se um alfabeto comum: a cidade se reconhecia em papéis, em caligrafias, em vozes que não precisavam se levantar. Agora que a vitrine escurece mais cedo, essas funções ficam ao relento; o que era abrigo de linguagem vira ausência que não se cobre com plástico-bolha.

A ruína não chegou de uma vez; veio de cupons silenciosos e promessas com cronômetro. Enquanto o balcão carimbava recibos, uma cesta invisível escolhia o mesmo título sem pedir licença. No marketplace da capital, um motoboy cruza a cidade e entrega em um dia; na Amazon, a confirmação pisca na tela e a encomenda percorre galpões por dez, um trânsito de caixas que ninguém vê. A tela oferece preço; o balcão oferece conversa. O leitor entra, pergunta, agradece; paga em outro lugar. No caixa, uma linha a menos. O leitor de códigos aprende, paciente, a ler o vazio.

Entre 1972 e 2025, meio século coube em caixas de papelão: recibos com carimbo trocando de formato, etiquetas remendadas, recortes de jornal grampeados a convites de leitura. Há uma fotografia da primeira vitrine acesa numa noite de inverno, uma tirinha do telex com endereço e número, um aviso datilografado sobre a tempestade que derrubou o toldo, um cálculo de juros feito a caneta vermelha no fim de um mês impossível. São livros de contas que também contam histórias: quando a praça semeou esperança, quando a cidade recolheu passos, quando ler foi o verbo mais caro e, ainda assim, o único que restou.

Livraria
Quando a última livraria fecha, a cidade desaprende a sonhar

Na véspera do comunicado, o dia correu em compasso lento, quase valsa. O casal que sustentou a casa por cinquenta e três anos chegou antes de o sol limpar a praça; ele conferiu o caixa com régua e lápis, ela passou a flanela por hábito, não por esperança. A pilha de mensagens prometia preços inalcançáveis e entregas cronometradas; o telefone vibrava sem dizer sim; a caixa de entrada devolvia comparações que nenhum balcão poderia vencer. Separaram doações com delicadeza de liturgia, numeraram exemplares de segunda mão com grafite curto, revisaram a lista de reservas escrita à mão. Sobre a mesa, uma foto do letreiro pintado a pincel lembrava a primeira abertura; no papel ao lado, ele ensaiou a frase que subiria ao vidro no dia seguinte e riscou duas vezes antes de aceitar a data: 2025. Não houve discurso; houve um silêncio de gente que mede uma vida.

Nas horas finais, arrumaram o cenário para que a cidade encontrasse dignidade, não desordem. Empilharam títulos a preço de custo, alinharam cadeiras que já tinham guardado estreias tímidas, acenderam luminárias para que nenhuma lombada se despedisse no escuro. Ela fechou a caderneta das contas antigas e perdoou duas pendências por decisão de quem sabe o nome dos devedores; ele separou três livros para crianças que vinham às tardes com caderno pautado debaixo do braço. Testaram o terminal de cartão, que ficou piscando em busca de rede; carimbaram marcadores que sobraram do último encontro; afixaram o aviso em papel comum, sem desenho, letra regular e firme. Não era gesto de comércio: era a última tentativa de manter acesa a conversa que uma cidade tem consigo. Quando saíram, deixaram metade das luzes acesas e a porta encostada; não por esquecimento, por gentileza.

No dia do comunicado, a notícia correu antes do papel. Passou pelo balcão da padaria, pelo banco de praça, pelos grupos de mensagem que acordam cedo. Os primeiros a entrar não pediram desconto; pediram tempo. Os que sustentaram a casa por cinquenta e três anos embrulharam devagar, barbante cruzado, recibo dobrado com uma palavra só: obrigado. Um homem deixou na gaveta a moeda que faltava desde outro mês; uma professora encostou o rosto na lombada de um atlas e demorou; um adolescente fotografou a prateleira que o viu crescer. Ao lado do balcão, uma mão demorou a soltar o tampo de madeira, como se pudesse segurar o lugar inteiro num gesto curto. Não havia pilhas de caixas, havia gestos: sacolas numeradas a lápis, papel de embrulho com o selo da casa, o cuidado de dobrar sem ferir a capa. Do lado de fora, o trânsito atravessava a praça sem olhar; do lado de dentro, cada saída parecia um pequeno juramento. As grandes redes e as plataformas, um clique, um preço impossível para o bairro, eram presença sem corpo: entregam quando convêm; fazem esperar quando não; vencem pelo silêncio. Aqui, a fala era lenta e, por isso, cara.

Não há biblioteca pública. Essa frase, que caberia num edital, pesa mais do que o cadeado. Durante cinquenta e três anos, a sala comum do texto foi esta. Era aqui que alguém chegava sem saber o que queria e saía com uma direção; aqui se aprendia a consultar o sumário, a desconfiar de resumos, a tomar fôlego diante de capítulos longos. O mundo mudou de prateleira: cadeias de galpões esmagaram margens, o marketing confundiu desejo com algoritmo, o livro virou mercadoria de corredor enquanto o hábito de ler pedia cadeira e tempo. A livraria não era monumento nem milagre; era a última peça de uma educação íntima que a cidade praticou em segredo. Quando se apaga a única luz pública da leitura, não falta apenas o comércio; falta a possibilidade de um adolescente descobrir uma frase que lhe valha por anos, de uma mãe mapear uma geografia que nunca vai visitar, de um trabalhador encontrar numa enciclopédia de abelhas um começo de conversa com o filho. Um lugar assim, em cidades como esta, fazia a ponte que o poder não construiu.

Ao fim do dia, a claridade baixa correu pelas estantes como ouro cansado. O inventário registrou números que não salvam ninguém e, sob eles, outra contabilidade se impôs: cinquenta e três anos de portas abertas para quem precisava entrar sem motivo; cinquenta e três anos de chuva batendo na marquise e gente lendo mesmo assim; cinquenta e três anos de nomes completos escritos com calma no caderno do fiado e no verso de um papel de embrulho.

A chave arranhou a garganta da fechadura e girou com um cansaço audível. O letreiro apagou sem espetáculo; o vidro reteve a tarde. A praça seguiu com seus barulhos de sempre, mas algo do som do mundo ficou falhado. A última livraria não é uma loja a menos; é o fim de uma conversa que ensinava a cidade a dizer as coisas pelo nome. Quem passa diminui o passo, talvez sem saber por quê.

Sem um quarto para os livros, uma cidade não acorda: apenas sobrevive.

Revista Bula

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