O romance da Netflix que todos estão assistindo — e que vai destruir seu coração em mil pedaços Divulgação / Freestyle Releasing

O romance da Netflix que todos estão assistindo — e que vai destruir seu coração em mil pedaços

A hipótese primeira não é metafísica. A espécie humana, organizada pelo defeito e pela perda, reconhece-se nos acidentes que a definem. “2 Corações” traduz essa intuição em narrativa dupla, alternando ritmos como quem observa a subida e a descida das marés. De um lado está Christopher, interpretado por Jacob Elordi com afabilidade e vigor controlado, que abre o filme sozinho na ilha que parece saída de um postal antigo; de outro, surge Jorge Bacardi, vivido por Adan Canto, herdeiro de um nome industrial que pesa, atravessando o mapa na primeira classe e negociando com um corpo pouco confiável. Lance Hool, atento ao risco de melodrama, aposta na contenção e recusa atalhos.

O roteiro, assinado por Robin Uriel Russin e Veronica Carlysle Hool, prefere a paciência de um artesão ao efeito instantâneo. Ao afirmar que a história começou antes do narrador, a montagem estabelece um jogo de escalas: vidas em paralelo, sintonias discretas, encontros que só se revelam quando vistos pelo retrovisor. Não há pirotecnia retórica. Em seu lugar, uma ética de observação: planos que respiram, cenas que permitem aos atores ocupar o quadro, sem a ansiedade de sublinhar pressentimentos a cada minuto. Essa confiança no olhar do público torna a emoção menos ruidosa e mais persistente.

A fotografia de Vincent de Paula sustenta muito do que o filme promete. As paisagens à beira-mar não são “bonitas” no sentido turístico; são desejáveis e, ao mesmo tempo, ligeiramente ameaçadoras, como se o excesso de luz pudesse apagar contornos. Em interiores — cabines de avião, salas de espera, quartos de hospital —, a paleta oscila do âmbar íntimo a frios discretos, sinalizando as condições do corpo sem gritar diagnóstico. Esse recato visual dá ao drama uma espessura rara em obras que, diante do tema, apelam à sentimentalidade. Hool não desconfia do silêncio; confia o suficiente para entregar a ele uma fatia de sentido. A mise-en-scène mantém a escala humana, evita elevações grandiloquentes e preserva a dignidade do cotidiano.

O desenho de som acompanha a mesma escolha. A trilha se mantém distante do crescendo fácil. O ruído do mar, os chiados da cabine, os bipes dos monitores compõem uma segunda respiração. Em certos trechos, o vácuo sonoro faz o que outra obra delegaria a cordas lacrimosas; a recusa desse atalho cobra do espectador uma escuta menos preguiçosa e devolve à cena uma medida de realidade. Não há exibicionismo técnico, mas há rigor no equilíbrio entre silêncio, ambiente e música, sempre a serviço do gesto dramático, nunca acima dele.

Narrativamente, a primeira metade organiza-se com clareza. Christopher e Sam, interpretada por Tiera Skovbye, constroem uma relação com o ímpeto dos jovens que entendem a pressa como tempo natural. Em paralelo, Jorge conhece Leslie, vivida por Radha Mitchell, e a ligação nasce do gesto miúdo, do olhar que espera, da conversa que encontra compasso. Até esse ponto, o filme opera com sobriedade quase analógica: planos médios, cortes que rejeitam a aceleração desnecessária e a confiança de que o detalhe cotidiano diz mais do que qualquer explicação. O roteiro permite que a experiência dos atores apareça sem vidro colorido: as cenas respiram, e a dramaturgia determina ritmo, não o contrário.

Quando as linhas começam a se aproximar, surgem fendas temporais que, num primeiro contato, podem parecer imprecisas. A impressão é deliberada. Em corredores de hospital, as horas se curvam, as datas trocam de lugar e a percepção perde o compasso. Hool não corrige essa experiência; replica-a no espectador. A aposta exige disposição para abandonar mapas e aceitar a vertigem como forma. Funciona porque a oscilação temporal não serve a uma exibição de estilo, mas a um regime afetivo e clínico: a percepção de que vida e morte, avanço e recuo, esperança e esgotamento convivem na mesma sala, dentro da mesma conversa, às vezes no mesmo minuto.

A abordagem do “milagre” confirma a maturidade do projeto. Entre o ceticismo que reduz tudo a estatística e o cinismo que sacraliza qualquer acaso, “2 Corações” busca a zona da contingência. O filme não romantiza o corpo falho e não demoniza a esperança. O que se estabelece é uma ética da atenção, um sistema de cuidado que inclui protocolo, papel assinado, perícia médica e responsabilidade afetiva. O milagre, quando se insinua, parece menos aparição e mais decisão: um conjunto de escolhas que permite a circulação de vida onde ela se interrompeu. A promessa de permanência deixa o território metafísico e passa a habitar o gesto concreto que se repete, que se documenta, que se partilha.

As atuações sustentam o equilíbrio. Jacob Elordi evita o vazio do “mocinho” e trabalha com humor discreto e física comedida. Em uma história que pede carisma, ele encontra a medida da gentileza sem complacência. Tiera Skovbye faz de Sam uma figura inteira, que cresce a cada cena, sobretudo quando a personagem precisa organizar a própria dor sem teatralidade. Adan Canto atua à beira do abismo com discrição; não há maneirismos de melodrama, há urgência real, fôlego curto e autocontrole como convicção. Radha Mitchell responde com deslocamentos mínimos e precisos: a mão que hesita, a frase que procura o verbo exato, o recuo que substitui qualquer hierarquia simplista entre força e fragilidade.

O núcleo familiar de Christopher, com Kari Matchett e Tahmoh Penikett, recusa os papéis de obstáculo e de anjo. São adultos atravessados por dúvidas, que sustentam com credibilidade o roteiro quando ele pede contrapontos éticos e práticos. O elenco de apoio, de modo geral, entende a economia de atuação exigida por Hool e sabe quando ceder espaço à situação. O diretor demonstra senso de medida ao administrar a energia dessas presenças, impedindo que cenas íntimas se convertam em pavio para explosões sentimentais.

No terceiro ato, a obra recolhe o que semeou e libera a energia acumulada. A catarse chega sem cálculo visível e por isso convence. Depois de tanta reserva, a vazão deixa de ser truque e passa a ser consequência. Quando a geometria narrativa se revela, o título “2 Corações” ganha ambiguidade que parecia literal demais no início. Dois corações não são apenas dois protagonistas, mas um circuito possível: vidas que se tocam, trocam e se prolongam. A opção por manter o processo fora de holofotes retóricos amplia o alcance emocional porque transfere o peso do discurso para a materialidade das decisões.

As imperfeições existem e contam. As idas e vindas temporais, coerentes com a proposta sensorial, por vezes enfraquecem a precisão histórica. A juventude de Jorge oscila em idades e ambientes que a mise-en-scène nem sempre sustenta, e algumas coincidências aparecem abraçadas com generosidade excessiva. O conjunto resiste porque a direção assume essas costuras à vista, com honestidade formal. A transparência vale mais do que um verniz reluzente que negaria a matéria. A obra prefere o risco de lidar com falhas a suavizá-las até o anonimato.

Convém registrar como Hool confia na decência dos pequenos gestos. Um olhar que não insiste, uma conversa interrompida por falta de palavras, o copo na cozinha de madrugada. Esse inventário mínimo organiza o mundo do filme. A promessa de “baseado em fatos reais” não surge como certificado automático de autenticidade; o trabalho se esforça para merecê-la. O que se mostra é menos a existência de milagres e mais a eficácia dos sistemas de cuidado — legais, médicos e afetivos — quando funcionam com responsabilidade e precisão. Essa escolha sinaliza experiência e responsabilidade com o tema, sem abdicar de forma sensível.

“2 Corações” afirma-se como drama consciente do próprio tamanho. A produção evita solenidade de vitrine e busca nitidez. Quando a emoção não é guiada pela pressa, chega com densidade e sem ruído. Instala-se devagar, confia no detalhe, convence sem elevar a voz. O espectador não recebe veredito sobre destino ou fé; encontra a cadeia de decisões humanas que, vez ou outra, produz aquilo que se chama sorte. Em um mercado que costuma tratar saúde e crença como matéria para alta voltagem lacrimejante, o filme de Hool opera em penumbra cuidadosa. É nesse regime de baixa luz que as atuações aparecem melhor, que fotografia e som ganham volume sem concurso de virtuosismo e que a ideia de permanência perde pompa para ganhar a modéstia de uma assinatura.

Filme: 2 Corações
Diretor: Lance Hool
Ano: 2020
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★
Revista Bula

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