O primeiro gesto é banal. Um bar iluminado demais, canecas grandes, uma distração que põe dois desconhecidos no mesmo trilho. Ele bebe a cerveja dela sem perceber. Nada explode, mas o deslocamento instala a chave da história. Em “Juntos e Misturados”, a comédia surge no intervalo entre constrangimento e reconhecimento, como se o filme observasse pessoas cansadas reaprendendo a conversar. A narrativa aponta para o romance sem barulho, o romance devolve humor de superfície calma. O resultado prefere proximidade a truque, rotina a espetáculo, método a ruído.
Lançado em 2014 e dirigido por Frank Coraci, “Juntos e Misturados” reúne Adam Sandler e Drew Barrymore em uma parceria que já havia provado fôlego em “Afinado no Amor”, de 1998, e em “Como Se Fosse a Primeira Vez”, de 2004. Aqui, a premissa é direta e funcional. Jim é viúvo, pai de três meninas, vendedor em loja esportiva, zeloso do que consegue administrar. Lauren é separada, mãe de dois meninos, organizada, pouco impressionável. Um encontro dá errado de modo prosaico. Por circunstâncias alinhadas sem estardalhaço, as duas famílias acabam em um resort na África do Sul. O cenário, que poderia virar cartão postal, é usado como tabuleiro para microprovas de convivência.
O roteiro de Ivan Menchell e Clare Sera organiza a narrativa por ações concretas que revelam caráter e modo de pensar. No encontro inicial, alguns minutos de atraso e um gole equivocado bastam para delinear contornos. Depois, Jim atravessa o corredor de higiene pessoal para comprar um item íntimo para a filha adolescente; a sequência expõe vulnerabilidade e cuidado sem humilhação. Lauren tenta reparar um equívoco doméstico e encontra outra forma de se comunicar com o filho. A comédia se ancora nesses dilemas cotidianos. O princípio é claro e consistente ao longo do filme: rir com as personagens, não delas.
A mudança de eixo para a África do Sul impõe um risco conhecido. Coraci contorna o exotismo fácil ao tratar o resort como espaço funcional e não como troféu visual. Há um safári que oferece paisagem e perigo controlado, um passeio de paraquedas que adiciona torque à confiança entre os adultos, uma sala de massagem que substitui atalho romântico por cumplicidade objetiva. Terry Crews aparece como mestre de cerimônias musical e costura blocos com números que funcionam como comentários internos à diegese. Quando a música entra, a narrativa desloca o pulso por alguns instantes e retoma em seguida. O efeito ajuda a administrar os 117 minutos sem que o filme entre em modo arrasto.
Sandler trabalha em registro contido. Jim é imperfeito sem ser bufão. As piadas de meleca e constrangimento existem em doses pequenas e cumprem papel narrativo específico. O gole errado, a pronúncia torta no balcão, o desconforto de quem não domina a prateleira do supermercado. Nada aparece como humilhação programada. O ator investe no olhar que entrega vulnerabilidade com economia e encontra respiro entre uma piada e outra. Vista a partir de hoje, a atuação antecipa escolhas futuras do intérprete. Em “Joias Brutas”, de 2019, e em “Arremessando Alto”, de 2022, ele enfrentaria exigências emocionais de outra ordem. “Juntos e Misturados” serve como antecâmara dessa curva, não porque abandone o humor, mas porque recusa o atalho mais raso.
Barrymore oferece o contrapeso necessário. Lauren é competente, protetora, pragmática. A atriz constrói a personagem pela escuta e regula a energia para que o parceiro não tome todo o quadro. A maternidade aparece sem idealização e sem propaganda de sacrifício. O arco com as meninas de Jim é conduzido com precisão. A relação com a caçula vivida por Alyvia Alyn Lind rende uma passagem musical que poderia escorregar para a lágrima automática. A direção recua meio passo. A canção entra de forma diegética. A cena funciona como lembrança e ponte, não como gatilho.
O elenco de apoio opera dentro do que a estrutura permite. Bella Thorne desenha uma primogênita em conflito com a própria imagem e com a expectativa paterna. A personagem abandona um apelido que já não lhe serve e encontra um lugar possível. Os meninos de Lauren participam como força de composição da nova constelação familiar. Há humor em situações de esporte, no refeitório, nos quartos do hotel. As crianças não são mascotes. São figuras que reorganizam prioridades e regulam o tempo dos adultos.
A construção visual prefere clareza a virtuosismo. A fotografia valoriza pele e textura, a luz média evita o brilho artificial que transformaria o resort em catálogo. Planos médios sustentam diálogos e deixam a piada respirar. A câmera recua nos números coletivos e aproxima quando um rosto pede detalhe. A mise-en-scène privilegia bloqueios simples e legíveis. No supermercado, Jim é enquadrado entre prateleiras que comprimem o quadro e ampliam a hesitação do gesto. Na sala de massagem, a montagem alterna aproximações discretas que reforçam cumplicidade e não erotizam a cena. No safári, a paisagem entra como fundo móvel para o diálogo, não como distração competitiva.
O som merece nota específica. A trilha musical recorre aos números internos do resort como comentário leve e como estrutura de transição. O desenho de som dos passeios ao ar livre privilegia vento, motor e ruído de terreno, o que protege a verossimilhança e evita trilha invasiva. O filme usa pausas com atenção. Em comédia, silêncio é ferramenta decisiva. Alguns segundos de suspensão entre fala e reação valem mais do que o volume de uma piada. A cena em que Lauren canta para a caçula invoca “Somewhere Over the Rainbow” como memória compartilhada. O registro é manso e claro, sem a compressão reluzente que muitas produções aplicam em canções conhecidas. A escolha reforça a função dramática da música, que aqui pertence à história e não ao ornamento.
As fragilidades existem. O conjunto de coadjuvantes é volumoso e nem todo subplot precisa do tempo que recebe. Há repetições de gag que variam pouco sobre a ideia inicial. Em um ou outro momento, o filme se contenta em reapresentar o mesmo gesto com mínimo deslocamento. Ainda assim, o saldo é de consistência porque a estrutura se mantém centrada nas relações e não nas situações. Quando a plateia percebe que a obra cumpre o que promete, a confiança aumenta. Isso é decisivo em uma comédia familiar.
O contexto de produção e carreira ajuda a medir o alcance. Frank Coraci é um diretor de artesanato confiável e conhecedor dos corpos dos seus intérpretes. Em “Afinado no Amor”, consolidou uma referência de química imediata. Em “Juntos e Misturados”, regula volume e organiza tom com senso de proporção. Barrymore reafirma a capacidade de sustentar afeto sem açúcar e de transformar a escuta em gesto dramático. Sandler confirma que maturidade em comédia não exige o abandono do besteirol, mas o seu enquadramento. Quando a piada aparece, ela serve ao personagem e não o contrário.
O roteiro de Menchell e Sera escolhe causa e efeito em vez de coincidência providencial. Objetos conduzem ações. Uma caneca vazia dispara o encontro errado. Um pacote de absorventes reorganiza a conversa entre pai e filha. Uma agenda apertada protege e limita. Nada aqui é símbolo. São coisas em cena que movem a narrativa um passo por vez. O método reforça a sensação de proximidade com pessoas reais operando com recursos ao alcance. Essa abordagem atende bem a quem busca diversão sem cinismo e sem sermões.
No terceiro ato, a alternância entre passagens tranquilas e lampejos de comicidade mantém a fluidez. Não há clímax pirotécnico. A produção fecha a trajetória com gestos coerentes com a escala doméstica adotada desde o início. A conclusão renova a confiança na dupla de intérpretes e preserva o tom que a direção sustentou com disciplina. Fica a impressão de que a comédia, tratada com cuidado e método, pode envelhecer bem.
★★★★★★★★★★